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Reinaldo Azevedo

Censura a uma exposição de arte e o projeto pró-estuprador da direita reaça

Obra censurada do artista Órion Lalli, a deputada federal Christiane Tonietto, que tem um estranho juízo sobre estupradores e estupradas, e o deputado estadual Márcio Gualberto. Os parlamentares entraram com notícia-crime contra a exposição - Reprodução/Instagram - Divulgação/Câmara - Reprodução/Twitter
Obra censurada do artista Órion Lalli, a deputada federal Christiane Tonietto, que tem um estranho juízo sobre estupradores e estupradas, e o deputado estadual Márcio Gualberto. Os parlamentares entraram com notícia-crime contra a exposição Imagem: Reprodução/Instagram - Divulgação/Câmara - Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

02/03/2020 07h24

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Consoante com os tempos, informou reportagem da Folha no sábado: "a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro censurou na sexta (28) a exposição "Todxs xs Santxs - Renomeado - #eunãosoudespesa", do artista Órion Lalli, que estava em cartaz no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica". O argumento? Uma das obras atacaria valores cristãos.

É do balacobaco.

Vamos lá. A imagem traz uma figura de aparência feminina, tendo à mostra um dos seios e um pênis. Está sobreposta a outra, recortada como em peças de quebra-cabeças, de dois homens se acariciando. O conjunto é acompanhado pela frase "Deus acima de tudo gozando acima de todos".

Pois bem! O deputado estadual Márcio Gualberto (PSL) foi à exposição e resolveu expelir proselitismo censor. Um vídeo registra o parlamentar chegando à exposição, com passos firmes, na linha "O policial de Deus". Diante da obra do artista plástico Órion Lalli, ele discursa:
"Aqui nós temos um oratório estilizado, numa imagem grotesca, de uma mulher representando a Virgem Maria, com um dos seios à mostra e, por incrível que pareça, numa extrema atitude de mau gosto e de desrespeito, com um pênis à mostra também."

Em seguida, refere-se à tal frase. Já volto ao ponto. Antes, algumas considerações.

VIRGEM MARIA? QUEM DISSE?
Não há nenhuma evidência de que a imagem remeta à Virgem Maria. Poderia ser Iemanjá. Ou Afrodite. Ocorre que o tal quer censurar a exposição e anuncia que tomará providências nesse sentido. Ele e a deputada federal Christiane Tonietto, também do PSL, entraram com uma notícia-crime contra a exposição na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

Ambos são ligados ao Centro Dom Bosco, que tem no comando o padre bolso-olavista Paulo Ricardo. A coisa não deixa de ser curiosa. Na marcha dos reacionários, somam-se aos evangélicos mais obtusos. Paulo Ricardo, no entanto, está entre aqueles que consideram que, na origem de todos os males do mundo contemporâneo, está ninguém menos do Martinho Lutero, a raiz primitiva do protestantismo, que resultou, depois de muitas derivações, nos evangélicos.

Entendo! Primeiro eles todos, juntos, põem fim ao mundo laico. Depois brigam entre si para ver quem Deus vai escolher entre os escombros da civilização... Se há uma inteligência superior nisso tudo, aposto não ser a de Deus...

DEUS GOZANDO ACIMA DE TODOS
Não quero chocar o tal Gualberto, mas, segundo uma das vertentes da mitologia grega, a de Hesíodo, Urano -- ou "o Céu" -- jogava, sim, uma chuva permanente de sêmen sobre Geia, a Terra. Era, vá lá, um Deus gozando acima de todos.

Mas o pai obrigava a mãe a manter escondidos os filhos em seu interior. Entre eles, estava Cronos. Geia, então, convence o filho a cortar os órgãos genitais do pai e jogá-los ao mar. Do sêmen que se espalhou nas águas, nasceu Afrodite; do sangue, que caiu na terra, vieram as Erínias — ou "Fúrias" na mitologia romana.

Quem autorizou Gualberto a cravar que se trata de uma alusão à Virgem Maria?

Não conheço o trabalho de Órion Lalli. Dada a imagem única que vejo, não sei se é bom ou ruim. O que sei com absoluta certeza é que católicos e não-católicos têm o direito de gostar ou não gostar e de protestar — desde que não firam o direito de escolha de quem quer ver a exposição. Já a censura e a queixa-crime são a expressão da mais obtusa e estúpida intolerância. Tanto pior quando a Prefeitura cede à pressão. Não custa lembrar: havia o aviso de que a exposição se destinava a maiores de 18 anos. Em si, já é um acinte à inteligência. Um dos maiores e mais transgressores poetas do mundo, Rimbaud, PAROU de escrever aos 17...

Lalli nega que a imagem se refira à Virgem Maria. Afirma: "Estão dizendo que é a imagem de uma santa cristã, mas não é. É a minha santa. É o meu oratório".

Numa democracia, ele nem precisaria se justificar. Ainda que fosse. E daí? Os católicos ofendidos teriam o direito de não ir à exposição. É evidente que não é o suposto vilipêndio que mobiliza os deputados. Querem é manter a sua clientela eleitoral e obscurantista nos cascos, para mostrar que são os vigilantes da moral e dos bons costumes.

Não é espetacular? Na semana marcada pela defesa entusiasmada que Sergio Moro fez do inquérito que investiga roqueiros e seus cartazes de convite para um show, temos a censura de uma exposição de arte porque um deputado cismou de ver a Virgem Maria onde ela não estava, acusando suposto vilipêndio de símbolo religioso. Com alguma honestidade intelectual, poderia confessar que não suporta mesmo é o fato de ser uma exposição homoerótica.

Mais: estava menos interessado em fazer valer um ponto de vista, ainda que obscurantista, do que em coreografar os passos do vigilante da moral, daí que uma câmera atenta o filme chegando à exposição, fazendo discurso diante da obra e depois "tomando providências".

UMA DEPUTADA ENTRE O ESTUPRADOR E A ESTUPRADA
Christiane Tonietto é autora de um projeto que quer proibir o aborto legal mesmo no caso de estupro, pauta que a Igreja Católica nunca abraçou. E faz o seguinte raciocínio singular:
"O autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher, senão ela não estaria grávida. Pergunta que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor quis fazer com a mãe: matá-la?".

Não é uma pergunta, mas uma perversão isso que ela, orgulhosamente, não cala. Na escala desta senhora, o estuprador está moralmente acima da mulher que, grávida em razão do estupro, fez um aborto segundo o que dispõe o Código Penal, que é de 1940. O sofrimento duplo da vítima, como se vê, lhe soa irrelevante.

Precisamos submeter a tese de Tonietto a uma aceleração. Se ela tivesse de atravessar o deserto ou em companhia de um homem que estupra, mas ao menos não mata, ou de uma mulher que, estuprada, fez um aborto, qual seria a sua escolha?

Ou ainda: dispusesse ela de um único prato de comida para matar a forme da mulher que fez o aborto ou a do estuprador, faria o quê?

A quem Tonietto, cristã radical que é, daria abrigo em sua casa tendo um único leito?

Podendo salvar só um deles do precipício, a quem daria a sua mão?

Na hora extrema, moribunda, estando Tonietto entre dois outros, o estuprador e a estuprada que fez aborto, a quem ela diria: "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso"?

Se bem que estou convicto de que, nesse trio, apenas uma pessoa iria para o paraíso: a estuprada. Acho que Tonietto morreria em companhia, então, segundo o seu projeto, daquele com que escolheu estar viva.

E antes que ela e sua turma venham com sua baba verde pra cima de mim, reitero uma posição conhecida: eu me oponho à descriminação plena do aborto. Mas também me oponho à estupidez, à barbárie e à burrice.

Uma mulher com seio à mostra e pênis, no cotejo com a indagação da tal deputada sobre aborto, chega a ser uma imagem pudica.

Ah, sim: Moro, o Mussolini de Maringá, deve ser favorável à censura, né? E, por certo, endossa a queixa-crime.

Bando de vândalos morais!