Como o bolsonarismo responde a um país que sofre e que celebra? Com o ódio!
Experimentamos neste sábado o desastre e a vitória; a dor e a felicidade; a celebração e a compunção. E, nessa particular expressão da "polarização", havia muito de Brasil porque conhecemos, como todo povo, a tragédia e a bem-aventurança, o infortúnio e a ventura, a desgraça e a sorte. E me ocorre, leitores, uma constatação, pensem comigo: a única razão de ser da política é atuar para conter ou eliminar a dor, a compunção, a tragédia, o infortúnio e a desgraça. E somos obrigados a reconhecer que há aqueles que se dedicam a esconjurar a felicidade, a celebração, a bem-aventurança, a ventura e a sorte. Eles não pertencem ao país que sofre ou que dança. Sua pátria é o ódio.
É claro que estou me referindo, num extremo, à devastação do Rio Grande do Sul, e, no outro, ao show de Madonna, no Rio, que reuniu, avalia-se, 1,6 milhão de pessoas. Onde há aflição, forçoso é que se levem esperança, víveres, infraestrutura, recursos, Estado. Para salvar vidas, resgatar corpos e abrir veredas novas para o futuro. Na outra ponta, que o êxtase não seja contaminado pelo fel, pela má-fé, pelos fanatismos que também matam.
GOVERNO MOBILIZADO
Desde o primeiro momento, o presidente Lula teve um comportamento exemplar no atendimento à população. À diferença do que publicou o PSDB numa nota pusilânime, a reação do governo federal foi rápida e compatível, até aqui, com a dimensão da catástrofe. Há um longo trabalho pela frente, e não há gestão, em qualquer das três esferas, que tenha esse tipo de intervenção como rotina. Por óbvio, os pontos de estresse da administração não são testados para acontecimentos disruptivos -- nem haveria como. E assim é no mundo inteiro.
Num primeiro momento, o importante é ter o diagnóstico correto, pôr para funcionar a máquina de acordo com a extensão, a profundidade e a diversidade da calamidade e tomar providências para mobilizar recursos, também os financeiros, para atender as pessoas, resgatando a normalidade possível.
Lula levou ao Rio Grande do Sul os Três Poderes da República, neste domingo, em sua segunda viagem ao Estado em quatro dias. Na comitiva, também o Tribunal de Contas da União. Assim como aconteceu no combate à Covid, será preciso, entre outras coisas, flexibilizar regras fiscais — como apontou Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e do Congresso — e estabelecer balizas de um "regime jurídico especial e transitório", como lembrou o ministro Edson Fachin, vice-presidente do Supremo.
Em 2020, para enfrentar a pandemia, fez-se essa escolha, à revelia do "Mito da Caserna" que governava o país. A PEC do Orçamento de Guerra, que tornava viáveis os recursos para responder a um evento terrivelmente extraordinário, foi articulada numa conversa entre Gilmar Mendes, ministro do STF; Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, e José Roberto Afonso, especialista em contas públicas. Eu era, então, colunista da Folha e escrevi a respeito no dia 10 de abril daquele ano. Congresso e Judiciário tiveram de encontrar uma resposta à revelia do negacionismo homicida que governava o país. Agora, em 2024, o país tem um presidente que aposta na vida, não na necropolítica.
Não tardará, sei bem, para que apareçam críticas à suposta "lentidão" nisso e naquilo. É importante, sim, que o jornalismo se mantenha vigilante para que as coisas aconteçam de maneira rápida, dentro do que é possível. Fiquemos atentos, porém, dados estes tempos, para a devida distinção entre a cobrança justa e o pernóstico maldizer, de viés puramente ideológico. Há hoje um animal político raivoso em certa imprensa: é o "extremista de centro". Em suas veias corre muito pouco sangue democrático, e seu coração balança mesmo é ao som do bolsonarismo, embora jure isenção...
A prioridade, obviamente, é salvar vidas. A isso se dedicam as forças estaduais e federais. A palavra significa, literalmente, "o que vem primeiro". Isso não quer dizer que as ações dispensem planejamento e estratégia. Mas é preciso definir desde já as balizas da reconstrução. O discurso de Lula, ontem, ao lado de Eduardo Leite, o governador, e dos representantes dos demais Poderes foi impecável: deu conta da gravidade da situação, com a devida sobriedade.
Inicio este texto falando dos extremos de pesar e fruição. Países podem ter reveses naturais devastadores. Ainda que, tudo indica, os eventos que têm colhido o Rio Grande do Sul derivem da mudança climática — grande parte dela provocada pelo homem planeta afora e também aqui —, há no que se viu o inesperado, o incerto, o imprevisível. Às vezes nos esquecemos de como foi que, humanos resilientes, chegamos até aqui.
No polo oposto da dor, houve festa planejada, organizada, bem-sucedida. Que bom seria se vivêssemos num mundo e num país em que sempre se pudessem cercar as margens de erro, como no show de Madonna. Mas "a vida é real e de viés", com suas ciladas, e não é raro que se tenha de improvisar um método.
AS HOSTES DA DESTRUIÇÃO
Então é chegada a hora de indagar: num e noutro Brasis neste sábado, que lugar estava reservado ao ódio, à malevolência, ao rancor, à hostilidade, ao ressentimento, à impiedade, ao despeito, à maledicência, ao brutalismo, à mentira, ao conspiracionismo, à crueldade, ao desatino, à estupidez?... E poderia aqui listar centenas de palavras que compõem o paradigma do demasiadamente desumano.
A qualquer um que mantenha um pacto essencial com a civilidade, não há lugar para os afetos da destruição.
E foi o que se leu e o que se viu nas hostes bolsonaristas nas redes sociais. Num primeiro momento, entraram os "bots" testando o terreno. Depois vieram as cabeças coroadas da abjeção e da indignidade. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chegou a escrever ontem à tarde, no X, que "Lula primeiro foi a Santa Maria, terra do SECOM Paulo Pimenta (PT-RS), e apenas hoje foi para o epicentro da tragédia na Grande Porto Alegre".
A mensagem é notável também pela ignorância, sem a qual não se é um bolsonarista literalmente (no seu caso) raiz. A viagem àquela cidade na quinta foi um acerto do presidente com Eduardo Leite, o governador do Estado. O dito Zero Três — amigão da alémã Beatrix von Storch (aquela cujo partido mantém vínculos com neonazistas) — tem o hábito de falar antes e pensar depois. O cataclismo que colhe o Estado só merece esse nome porque não tem epicentro.
Seu textinho vil e mentiroso expôs a natureza do bolsonarismo, em que alguns vislumbram até centelhas de moderação!!! E aqui uma nota rápida: esse delírio não é de um só; é que só os "destemidos" o vocalizam. A verdade inescapável é que os ditos "patriotas" nada tinham a dizer ou a oferecer.
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OLHAR APURADO
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Quero receberTanto é assim que uma das "fake news" que mais os mobilizaram foi a presença de Janja no show de Madonna. O fato: a primeira-dama acompanhou o presidente ao Rio Grande do Sul, com agenda ligada à minoração dos efeitos do desastre, mas com agenda própria.
Não! Eles nada tinham e nada têm. Na sexta, cobrei, por exemplo, da chamada "bancada ruralista", que reúne mais de 300 parlamentares, uma forma efetiva de mobilização para ajudar as vítimas. Nada! Os valentes emitiram uma nota cheia de abstrações e papo-furado. Estou surpreso? É claro que não! Em 2023, o rico agro gaúcho não moveu uma cuia de chimarrão para atender aos desgraçados da enchente. Foi o MST a distribuir 30 mil marmitas aos pobres com fome do Vale do Taquari.
Sim, eu sei que a hecatombe de agora não poupa ninguém. Mas é certo que a inundação não chegou às contas bancárias. Cadê a solidariedade? Quem dera os ruralistas do Congresso fossem tão ágeis na efetiva solidariedade como são para aprovar reacionarismos! A desgraceira deixou a nu os hipócritas.
O ÓDIO COMO MÉTODO
Se os "afetos de destruição" não servem para minorar o sofrimento de desabrigados e de milhares de pessoas que têm suas respectivas histórias tragadas por enchente e lama, que lugar hão de ocupar numa celebração que vale por uma declaração de princípio? Qual? Todas as pessoas devem se afirmar sendo quem são, respeitados os direitos do outro. O show de Madonna vale menos por suas qualidades estéticas -- e não estou fazendo um juízo crítico da apresentação -- do que por seu apelo ético e, pois, em larga medida, político. Não há hipótese de aquele 1,6 milhão de pessoas não corresponder à celebração da diversidade e da democracia.
E, também nesse caso, a vanguarda da reação e do atraso entrou em ação. Um de seus instrumentos, como ficou claro, era a mentira: além da suposta presença de Janja — que, assim, evidenciaria seu desdém pelo povo gaúcho —, denunciavam-se verba federal no evento e captação de recursos pela Lei Rouanet. Não seriam eles se, na pele de cordeiro de bons cristãos, não exibissem as presas sanguinolentas do lobo: multiplicaram-se as manifestações homofóbicas, as denúncias de destruição dos "valores tradicionais", as ignomínias daqueles que estão de tal sorte convencidos do caráter modelar de suas respectivas vidas miseráveis que têm a pretensão de impô-las a todo mundo.
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Eu não sei qual é o futuro do bolsonarismo quando "até" a imprensa profissional chama Tarcísio de Freitas de "centrista e moderado". Ao escrever o advérbio "até", expresso uma crença antiga e civilizatória, segundo a qual tal profissionalismo impõe que se chamem as coisas pelo nome que têm, segundo o paradigma da democracia como valor inegociável.
O que sei, e isto ficou claro mais uma vez, é que o bolsonarismo e a militância bolsonarista — não me refiro ao conjunto do eleitorado — não sabem o que fazer nem com o Brasil que padece nem com o Brasil que comemora; nem com o Brasil que é colhido pela morte nem com o Brasil que tem ânsia de vida; nem com o Brasil que pode ser absurdamente trágico nem com o Brasil que sabe ser dramaticamente feliz.
Por que não? Porque a parte do país que hoje pede socorro clama por respostas técnicas, não por berreiro ideológico, e esses embusteiros não sabem o que fazer, como não souberam durante a pandemia. A vida e a morte de pessoas reais os incomodam porque cobram que administrem a realidade em vez de apenas vituperar contra os inimigos. Lembrem-se de Bolsonaro contra a vacina e contra o distanciamento social, ministrando cloroquina até às emas. Procurem a foto desse mesmo senhor a passear de moto aquática em Santa Catarina, em 2021, enquanto a Bahia enfrentava a maior enchente de sua história.
Já a parte do país que estava em êxtase os enfureceu porque acreditam fanaticamente no poder colonizador do ódio, a que muitos deles emprestam valor patriótico ou religioso, quando não as duas coisas. Não lhes parece razoável um mundo em que, entre pessoas livres e em condições de escolher, "qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar".
CONCLUO
Não sabem dar a mãos aos que choram. Não sabem dar a mãos aos que riem. Só lhes resta a força do ódio, que não leva comida ao prato dos gaúchos, não reconstrói estradas nem edifica casas. Também não estimula o canto, não incentiva a dança nem exalta a liberdade.
O ódio só sabe destruir.
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