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"Autoridades brasileiras não aprenderam nada em 52 anos", diz autor de livro sobre maior incêndio do Brasil

A tragédia do Gran Circo Norte-Americano, em 1961, causou mais de 500 mortes e foi o incêndio mais mortal na história do país - Acervo UH/Folhapress
A tragédia do Gran Circo Norte-Americano, em 1961, causou mais de 500 mortes e foi o incêndio mais mortal na história do país Imagem: Acervo UH/Folhapress

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

29/01/2013 06h00

Autor do livro "O espetáculo mais triste da Terra: o incêndio do Gran Circo Norte-Americano", o jornalista Mauro Ventura afirmou ao UOL que a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria (RS), na madrugada deste domingo (27) --que vitimou mais de 230 jovens--, é um indício de que as autoridades brasileiras "não aprenderam nada nos últimos 52 anos".

Na tarde do dia 17 de dezembro de 1961, mais de 500 pessoas morreram enquanto o Gran Circo Norte-Americano, situado em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, era consumido pelas chamas. Esse foi o incêndio mais mortal na história do país.

Incêndio em boate de Santa Maria (RS)
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"Basta passar a comoção inicial que os erros se repetem. O que mais impressiona é que parece que essas tragédias ocorrem em vão. (...) Naquela ocasião, foram mais de 500 vítimas. As autoridades não aprenderam nada nos últimos 52 anos. Sempre se fala em fatalidade, que é uma palavra muito cômoda para esconder os problemas", disse.

"Conforme o tempo passa, a memória das pessoas vai se apagando, as regras vão se afrouxando e a impunidade continua", completou o jornalista.

Embora separadas por mais de meio século, há uma série de características semelhantes entre as duas tragédias, segundo Ventura. Tanto o circo em Niterói quanto a boate de Santa Maria estavam com superlotação, e ambos não tinham saída de emergência. Além disso, há em comum o fato de que o material utilizado pelos proprietários dos estabelecimentos era altamente inflamável.

"O circo tinha apenas uma porta para entrada e saída, da mesma forma que a boate. Não havia nenhuma porta de emergência. O Gran Circo também não possuía extintores de incêndio, o material utilizado para fabricar a lona era altamente inflamável [a perícia mostrou que a lona era feita com algodão revestido por uma camada de parafina, e não de náilon, como propagava o então dono do circo, Danilo Stevanovich, morto em 2001]. No caso da boate, os extintores não funcionaram, pelas primeiras notícias que recebemos, e o teto foi rebaixado para instalação de isolamento acústico que utilizava material inflamável. Enfim, nos dois casos, não havia um sistema anti-incêndio", argumentou ele, lembrando ainda o fato de que o circo utilizava, em 1961, grades de ferro para controle de acesso.

"Da mesma forma que se as saídas da boate não tivessem obstruídas por seguranças, talvez a tragédia fosse muito menor. No circo, quem conseguiu escapar do fogo acabou morrendo ou asfixiado ou pisoteado", completou.

Legislação obsoleta

Segundo o jornalista, já existiam na década de 60 debates sobre o tema da segurança de espaços com grande volume de entrada e saída de pessoas, porém pautados, do ponto de vista da legislação, em um decreto aprovado durante o governo de Getúlio Vargas, em 1937. As regras eram diferentes para a concessão de alvarás a circos, pois estes eram tidos como eventos "provisórios".

"A legislação era obsoleta e, como os circos permaneciam por pouco tempo em um mesmo local, eles obedeciam a regras diferentes. A perícia feita depois do incêndio no Gran Circo é muito crítica em relação às autoridades. O circo possuía, sim, alvará, mas que foi concedido a um local totalmente inadequado. O diretor da polícia técnica da época classificou o responsável pela concessão desse alvará como negligente. Um dos peritos disse que o circo era, na verdade, uma 'armadilha mortal', pois as instalações elétricas eram péssimas. Houve uma crítica geral, desde bombeiros ao antigo Serviço de Censura de Diversões. (...) Mas ninguém foi punido depois. Nenhuma indenização foi paga", disse.

DESESPERO

"Pouco antes, Semba tinha sido aplaudido por mais de 3.000 espectadores. Agora, também saía fugido do picadeiro. Aos 24 anos, sempre tivera um comportamento previsível. Evitava gestos bruscos, pois sabia que a punição lhe doía no couro. Preferia movimentos estudados, porque assim lhe fora ensinado. Como todo mundo no circo, ele havia acabado de ouvir o grito de fogo. O corre-corre do público provocou-lhe inquietação, a gritaria da multidão deixou-o irrequieto, mas somente quando um pedaço de lona queimada o atingiu ele percebeu que chegara a hora de deixar a prudência de lado e debandar. Sua escapada seria comentada anos à frente. Ele seria olhado com um misto de respeito e temor, admiração e cólera. Herói para uns, porque abriu espaço por onde muitos passaram, vilão para outros, porque provocou mortes em seu caminho, Semba acabou se salvando com poucas escoriações. Durante a fuga, moveu-se com uma desenvoltura incomum para suas quatro toneladas, o que poderia causar estranheza, não fosse ele um elefante --ou melhor, uma elefanta"

Trecho do livro "O espetáculo mais triste da Terra: o incêndio do Gran Circo Norte-Americano"

Fuga da elefanta

O que acabou salvando um grande número de pessoas, segundo Ventura, foi a fuga da elefanta Semba, uma das principais atrações do Gran Circo Norte-Americano. Assustada com as chamas, ela correu para fora da lona, abrindo assim um enorme buraco em uma das laterais.

"A fuga dela abriu um rombo pelo qual muita gente conseguiu sair. Algumas pessoas morreram pisoteadas, mas, no fim das contas, ela salvou mais pessoas do que matou", disse o autor do livro.

Comoção

Assim como nos dias que sucedem a tragédia em Santa Maria, o incêndio no Gran Circo Norte-Americano foi capaz de comover milhares de pessoas em todo o mundo, o que inclui o então papa João XXIII, que enviou dinheiro para as vítimas.

"Claro que hoje esse tipo de tragédia se espalha com rapidez muito maior. Na época, o grande veículo era o rádio. A informação não circulava de forma tão rápida. O incêndio do circo foi capaz de promover uma comoção mundial muito antes da globalização. O papa, inclusive, mandou um cheque para ajudar no atendimento às vítimas e também mandou rezar uma missa", explicou.

Ventura citou ainda o fato de que os dois maiores nomes do futebol brasileiro, Pelé e Garrincha, realizaram um amistoso entre os seus respectivos clubes, Santos e Botafogo, para angariar recursos. "Não foi só isso. Teve a explicação mediúnica do Chico Xavier. A atriz italiana Gina Lolobrigida doou sangue. Um dos maiores cirurgiões plásticos da época, Fortunato Benaim, saiu correndo da Argentina e ficou uma semana em Niterói. Os Estados Unidos mandaram um tipo de pele que só existia lá", afirmou.

Incêndio criminoso

A investigação policial apontou três responsáveis pelo incêndio no Gran Circo Norte-Americano, sendo o grande culpado o ex-funcionário Adilson Marcelino Alves, o "Dequinha", posteriormente preso e condenado a 16 anos de prisão e mais seis em manicômio judiciário, como medida de segurança.

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Dequinha conseguiu fugir da prisão em 1973, mas foi assassinado menos de um mês depois. Seus cúmplices foram identificados como José dos Santos, o "Pardal", e Walter Rosa dos Santos, o "Bigode". Ambos também foram presos e condenados, e não se sabe o que aconteceu posteriormente, segundo Ventura. "Perdeu-se o contato com os outros dois. Na verdade, quase todos os registros relativos ao circo foram perdidos", disse.

Apesar da maioria das testemunhas entrevistas pelo jornalista defender a tese de que Dequinha fora acusado de forma injusta, o autor entende que o ex-funcionário, de fato, foi o responsável pela tragédia. De acordo com a versão policial apresentada na época, o suposto criminoso teria planejado colocar fogo no circo por ter sido demitido após dois dias de trabalho.

A demissão teria ocorrido, segundo os registros, porque Alves apresentava problemas mentais e ainda tinha antecedentes criminais por furto, o que desagradou o proprietário do circo, Danilo Stevanovich.