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O que poderia ter evitado a tragédia em Santa Maria?

Bombeiros trabalham no incêndio, na madrugada de domingo (27) - Germano Roratto/Agência RBS
Bombeiros trabalham no incêndio, na madrugada de domingo (27) Imagem: Germano Roratto/Agência RBS

28/01/2013 06h35Atualizada em 28/01/2013 07h41

Negligência, superlotação, falta de fiscalização, estrutura deficiente e uso de pirotecnia. Essas são algumas das hipóteses que, somadas, teriam contribuído para a tragédia da madrugada do último domingo na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na qual morreram pelo menos 231 pessoas.

Outras 106 continuam hospitalizadas, pelo menos 16 em estado grave.

Famosa por abrigar festas universitárias, a boate era ponto de encontro de estudantes e tinha capacidade máxima para 2 mil pessoas.

Este é o segundo incêndio mais fatal da história do Brasil. A pior tragédia deste tipo ocorreu em 1961 no Grande Circo Brasileiro, em Niterói, quando 503 pessoas perderam a vida.

A BBC Brasil conversou com especialistas que elencaram possíveis fatos que poderiam ter culminado na tragédia, a partir da análise de depoimentos de testemunhas e autoridades locais. Confira.

Possível negligência

Um dos proprietários da boate Kiss confirmou, em depoimento à Polícia Civil, que o alvará de funcionamento da casa noturna estava vencido desde dezembro do ano passado.

Além disso, segundo o coronel nacional de Defesa Civil, Humberto Viana, o local funcionava também sem o Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI), que havia expirado em agosto de 2012. Entretanto, o estabelecimento estava liberado para operar até nova perícia.

Emitido pela Prefeitura com base em pareceres dados por outros órgãos, o alvará é uma licença que autoriza que determinada atividade seja exercida em determinado local.

Já o PPCI, segundo definição da própria Brigada Militar do Rio Grande do Sul, é "um processo pelo qual todo o proprietário ou responsável por prédios com instalações comerciais, industriais, de diversões públicas e edifícios residenciais com mais de uma economia e mais de um pavimento deve possuir".

O documento é expedido pelo Corpo de Bombeiros a partir de uma inspeção. Na vistoria, o órgão verifica se o estabelecimento cumpre as normas vigentes de acordo com a atividade exercida no local, como a existência de extintores de incêndio e saídas e iluminação de emergência.

Especialistas ouvidos pela BBC Brasil consideram que, apesar de a casa noturna já ter obtido a permissão de funcionamento no passado, uma vez que os documentos são necessários para a abertura de qualquer estabelecimento comercial, a manutenção das atividades de um local com licenças vencidas aumenta o risco para os usuários.

"Houve relatos, por exemplo, de que os extintores não funcionaram. Em tragédias como essas, sempre há situações muito óbvias que acabam negligenciadas", afirmou à BBC Brasil Carlos Wengrover, engenheiro e coordenador do comitê brasileiro de segurança contra incêndio no Rio Grande do Sul.

"É preciso saber se a casa cumpriu à risca as normas determinadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como, por exemplo, a existência de iluminação de emergência", acrescenta Wengrover.

Possível superlotação

A boate Kiss informava ter capacidade máxima para receber 2 mil pessoas. Não se sabe ao certo quantas pessoas estavam no interior do estabelecimento no momento do incêndio.

No entanto, a pedido da BBC Brasil, especialistas calcularam em 1,3 mil pessoas a lotação máxima da casa, com base em seus 650 metros quadrados de área.

O cálculo leva em conta até duas pessoas por metro quadrado, número limite para locais como casas noturnas, conforme previsto nas normas da ABNT, que regem a normalização técnica no país.

"A lotação de um estabelecimento dependerá de sua área útil e de sua finalidade. Isso é verificado pelos bombeiros mediante inspeção", explicou Ivan Ricardo Fernandes, engenheiro civil e capitão do Corpo de Bombeiros do Paraná.

"Antes disso, entretanto, o proprietário precisa ter contratado um engenheiro a quem caberá, como responsável técnico, definir a capacidade máxima do local com base, entre outras coisas, nas normas de segurança contra incêndio", acrescentou.

Possível falta de fiscalização

Para especialistas, tanto a Prefeitura quanto os bombeiros podem ter falhado ao não verificar, por meio de vistorias, se a casa noturna de Santa Maria se adequava às normas determinadas pela legislação.

"O que mais vemos nessas tragédias é o não cumprimento das normas. Prefeitura e bombeiros precisam atuar em conjunto com um trabalho de fiscalização profunda", disse à BBC Brasil Luiz Antonio Cosenza, presidente da Comissão de Análises e Prevenção de Acidentes do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ).

Segundo Cosenza, as vistorias ajudam a reduzir o número de acidentes. Somente no ano passado, lembrou ele, cerca de 90% de todos os acidentes relacionados à construção civil no Rio de Janeiro foram causados por falta de manutenção.

"Cabe aos órgãos responsáveis interditar o local em caso de descumprimento da lei, assim como responsabilizar o proprietário e o locatário por qualquer risco que o estabelecimento possa apresentar", disse Cosenza.

"Se realmente só havia uma saída de emergência, por que este estabelecimento estava funcionando?", questionou Fernandes.

Eles, entretanto, alertaram para o baixo efetivo tanto da Prefeitura como do Corpo de Bombeiros - órgãos responsáveis pela fiscalização deste tipo de estabelecimento - o que dificultaria a fiscalização diária.

"Tanto bombeiros quanto Prefeitura padecem com a falta de pessoal. Isso invabiliza o trabalho dos órgãos responsáveis pela prevenção de acidentes", afirmou Fernandes.

Possíveis deficiências estruturais

Em entrevista à BBC Brasil, o ex-bancário Alberto Tessmer, que presenciou o incêndio e ajudou no resgate das vítimas, afirmou que só havia uma única área de escape na boate, a mesma pela qual o público entrava na casa noturna.

Além disso, segundo ele, não havia "qualquer sinal" de iluminação de emergência - que, em caso de incidentes, servem para indicar a rota de fuga mais rápida.

Tessmer acrescentou ainda que muitas pessoas teriam confundido a aparência de uma porta dentro da casa noturna, que dava acesso aos banheiros, a de uma possível saída de emergência.

Para especialistas, a hipótese pode fazer sentido, uma vez que, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o capitão Edi Paulo Garcia, da Brigada Militar, contou ter tirado cerca de "180 corpos de vítimas" dos banheiros.


Segundo Fernandes, do Corpo de Bombeiros do Paraná, tais circunstâncias evidenciam a precariedade de estrutura da casa noturna.

"Considerando a área útil e a atividade do local, seriam necessárias pelo menos duas saídas de emergência, que, juntas, deveriam somar 7 metros de largura", explicou Fernandes.

"Além disso, ainda segundo as normas da ABNT, a distância máxima a ser percorrida até a área de escape deveria ser de 30 metros", acrescentou.

Segundo relatos de testemunhas, a única porta de saída media em torno de 2 metros de largura por 2 metros de altura.

 

Uso de pirotecnia

Segundo relatos de testemunhas, um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava na madrugada do último domingo, acendeu um sinalizador em meio a performance.

As faíscas teriam atingido o isolamento acústico do teto e desencadeado rapidamente o incêndio, que não pôde ser controlado.

A pirotecnia era comum nas apresentações do grupo. No site de compartilhamento de vídeos YouTube, por exemplo, apresentações antigas da banda revelam o uso dos fogos de artifício semelhantes aos que foram usados na boate Kiss.

"No entanto, os donos da casa noturna nem os organizadores da festa deveriam ter dado permissão à essa prática, uma vez que, consideradas as características do espaço, ela é proibida e pode causar grandes riscos", disse Wengrover.