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Após Copa, mendigos voltam a Copacabana e reclamam de recolhimento forçado

Segundo os próprios moradores de rua, durante a Copa havia um número muito abaixo do normal de mendigos nas áreas turísticas do Rio - Gustavo Maia/UOL
Segundo os próprios moradores de rua, durante a Copa havia um número muito abaixo do normal de mendigos nas áreas turísticas do Rio Imagem: Gustavo Maia/UOL

Gustavo Maia

Do UOL, no Rio

06/08/2014 06h06Atualizada em 06/08/2014 09h34

Denúncia do MP-RJ (Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro) em junho, antes do início da Copa do Mundo, alertava: apesar de proibição judicial, centenas de mendigos estavam sendo retirados das ruas da capital fluminense e levados para um abrigo da prefeitura, que estava “em condições precaríssimas de superlotação”. E parte deles de forma compulsória, prática ilegal. A SMDS (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social) negou a realização de recolhimentos à força, mas o UOL ouviu diversos moradores de rua que voltaram a ocupar as praças e calçadas de Copacabana, na zona sul da cidade, após o torneio e descrevem a mesma situação denunciada pelo Ministério Público.

Também controverso, o próprio funcionamento do Abrigo Rio Acolhedor, em Paciência, na zona oeste do Rio, localizado a cerca de 60 quilômetros de Copacabana e criticado por todos os moradores de rua ouvidos pela reportagem, é alvo de disputa judicial entre o MP-RJ e o município. A prefeitura conseguiu reverter na Justiça, em julho, a decisão que proibia o espaço de acolher novas pessoas desde maio.

O retorno dos mendigos para Copacabana após a Copa foi logo notado pelos moradores do bairro e por quem trabalha na região. Para o estudante de comunicação social Odin Matos Rodrigues, 21, que sempre morou no bairro, durante o período do evento, não se via quase nenhum mendigo pelas ruas. "Era quase zero, mas quando acabou, parece que eles brotaram. Tem muito, até mais do que antes. O que fizeram durante a Copa foi uma maquiagem", afirmou o universitário.

Odin conta que presenciou "várias vezes", antes da Copa, a retirada de moradores de rua por funcionários da secretaria. "Na praia, principalmente, passava uma van da prefeitura e levava eles. Muitos resistiam, corriam, até gritavam que iam ser maltratados", lembra. "Depois que acabou a Copa, eu não vi mais nenhuma vez." A jornaleira Auriane Costa, 48, que trabalha em uma banca na rua Hilário de Gouvêia, percebeu a volta dos mendigos principalmente durante as noites. "Agora tem bem mais do que na Copa. Eles ficam por aí nas calçadas, em grupos grandes", afirma.

Um dos moradores de rua que concordou em conversar com a reportagem --solicitando anonimato-- afirmou ter sido levado “mais de sete vezes” para o abrigo da prefeitura apenas durante a Copa. Todas contra sua vontade.

Segundo ele, as equipes da SMDS, acompanhados de homens da Guarda Municipal, passavam pela região duas ou três vezes por dia no período da competição. Desde o fim do torneio, no entanto, a frequência foi reduzida a uma por dia, segundo os moradores de rua consultados.

“Eles vinham sempre de madrugada. Algumas vezes eu consegui me esconder, mas quando me viam, arrastavam à força, batiam e me levavam. Se eu tivesse telefone, eu gravaria o que eles fazem com a gente”, declarou o homem, de 28 anos. “Dizem que a gente pode sair quando quiser do abrigo. Mas como a gente vai voltar de lá? É muito longe e a gente não tem dinheiro para passagem.”

De acordo com os números mais recentes divulgados pelo Ministério Público do Rio, 669 pessoas foram retiradas das ruas entre os dias 20 de maio e 2 de junho deste ano. O UOL questionou a SMDS sobre a quantidade de recolhimentos neste período e durante a Copa do Mundo, que ocorreu entre 12 de junho e 13 de julho, mas não obteve resposta.

Os próprios moradores de rua afirmam que durante a Copa havia um número muito abaixo do normal de mendigos nas áreas turísticas do Rio. “Gringo pôde dormir na areia, nas praças, mas a gente, brasileiro, não. Os argentinos ficaram fazendo um barulho danado toda noite, até com tambor, aqui na praça do Lido [em Copacabana]. Se fosse com a gente, nem sei o que fariam”, afirmou outro morador de rua, de 30 anos, que também disse ter sido agredido durante um recolhimento. “De madrugada eles fazem o que querem com a gente.”

Único a aceitar ter o nome divulgado, o morador de rua Sidnei do Nascimento, 41, chamou de “covardes” os recolhimentos compulsórios. “Não ajudam a gente em nada. Só querem mostrar para a sociedade que não existe sofredor, para o turista ter uma imagem boa”, declarou. “Na rua pelo menos a gente tenta ganhar um dinheirinho”.

Os moradores de rua também criticaram as condições do Abrigo Rio Acolhedor, que segundo os relatos tinha o banheiro entupido, dispunha de cobertores e colchões insuficientes e ficava ao lado de um ponto de venda de drogas.

Consultada pela reportagem, a SMDS destacou em nota oficial que “não houve e não há” --estas palavras em negrito e em letras maiúsculas-- “na cidade do Rio de Janeiro uma política de higienização, com a retirada de pessoas em situação de rua em função da Copa do Mundo ou de qualquer outro evento”. A secretaria informou ainda que as ações da pasta desde 2013 “visam ao acolhimento voluntário e ao restabelecimento dos vínculos com a família e a sociedade”.

Para a promotora Patrícia Villela, coordenadora do CAO Cidadania (Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Cidadania) do MP-RJ, que fez uma visita surpresa ao abrigo no dia 2 de junho e encontrou diversas irregularidades, o descumprimento da decisão da Justiça por parte da SMDS às vésperas da Copa do Mundo levantam questionamentos. “Eu não posso te dizer com certeza se a questão era realmente a higienização social, mas os números são reveladores”, declarou a promotora.

Segundo Patrícia, todas as irregularidades observadas pelo MP-RJ foram comunicadas à 9ª Vara da Fazenda Pública, com fotos e vídeos, mas ainda assim a prefeitura obteve decisão favorável. “Judicialmente, todas as medidas que estavam ao nosso alcance, nós fizemos. Entramos com recurso novamente e agora estamos dependendo da resposta do Judiciário”, afirmou Villela.