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"Espalhar 'noia' em SP vai ajudar no quê?", pergunta moradora da Cracolândia

Usuários circulam pela região da Cracolândia, em São Paulo, após operação policial ocorrida no domingo (21) - Nelson Antoine/UOL
Usuários circulam pela região da Cracolândia, em São Paulo, após operação policial ocorrida no domingo (21) Imagem: Nelson Antoine/UOL

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

23/05/2017 20h08

Há um sentimento de tristeza e de revolta entre frequentadores, moradores e comerciantes do "fluxo", aglomerado de barracas que era o "coração" da Cracolândia, na região central de São Paulo, depois da megaoperação conjunta de forças do Estado e da Prefeitura de São Paulo que pôs tudo abaixo e realizou mais de 40 prisões, no domingo (21).

Sob o céu cinza do tempo nublado, vigiados por policiais militares e pela Guarda Civil Metropolitana que ocupam o local, homens e mulheres esquálidos, usuários de crack que ali moram ou usam droga, circulam pelas cercanias sem saber muito bem para onde ir, envoltos apenas em suas cobertas ora cinza, ora de cores berrantes.

Um sentimento específico comum em cada coração e mente: a injustiça do destino reservado a cada um. Afinal, a Cracolândia, dizem, podia fazer as vezes de família, formava casais, dava um sentido para a vida de muitos, embora talvez cobrando um preço muito alto, como a doença e a morte.

O "fluxo", polo de atração, se situava na alameda Dino Bueno, próximo à alameda Helvétia, junto a uma base da Polícia Militar. Uma árvore era a fronteira fixada entre os dois mundos: viciados não podiam vir para cá da árvore, plantada perto da esquina, que a polícia não avançava. "Éramos orientados a vê-los e tratá-los como se fossem doentes", explica um dos PMs do posto, o sargento Prieto.

Neste dia cinza e frio, os comerciantes que ali vendiam bebidas e lanches estão correndo para salvar o que dá de seus pertences, mercadorias, estufas, eletrodomésticos, como geladeiras, após a prefeitura determinar o fechamento de todos os estabelecimentos no centro da Cracolândia e lacrar as portas mediante a construção de muros de blocos. O cimento que liga os blocos ainda está fresco no começo da noite.

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Comerciante retira pertences após seu bar ser lacrado pela prefeitura
Imagem: Nelson Antoine/UOL

O comerciante Antônio Francisco Mendes Costa, há três anos dirigindo um bar no local, empurra uma geladeira clara pela rua, após o aviso da lacração: "Tenho alvará certinho, quer ver?", avisa, para aceitar: "Agora vou ter de montar outro comércio".

Junto do "fluxo", bares abriam normalmente 24 horas, para o movimento que nunca se encerrava.

Em outro bar prestes a ser fechado, um homem fala por cima do balcão, enquanto tenta, com pressa, retirar o que pode dali: "Aqui a gente é honesta, trabalha honestamente. Não temos nada a ver com o movimento do tráfico. E agora estou desempregado", diz.

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Agnelo Hermógenes e Itamar Lopes: Não somos animais
Imagem: Nelson Antoine/UOL

"Acabou comigo: perdi a minha moradia e o meu trabalho", lamentava outro homem, Agnelo Hermógenes dos Santos Neto, 43, que diz ter sido viciado em crack, morado na rua e ser soropositivo para Aids. Está muito magro, os olhos são fundos. "Essa tosse que eu tenho agora foi por causa de ser obrigado a ficar na chuva na operação." Ele ajudava Itamar Carneiro Lopes, 43, o dono do bar, e com isso ganhou o apoio para sair da rua e morar sobre um colchão no alto do estabelecimento, no fundo.

"Tinha que dar um prazo para a gente: 'Olha, você tem dois ou três dias'. Não podia ser assim, sem aviso", esbraveja Itamar, reconhecendo que trabalhava sem o alvará da prefeitura. "Mas, enquanto isso, os de lá de cima estão lá", aponta, referindo-se aos políticos acusados de corrupção. "Não somos animais, isso é uma vergonha."

"Espalhar para quê?"

Entre os usuários de drogas que vivem ou circulam por ali há muitos anos, às vezes, por décadas, o desconcerto é grande.

Lúcia Moreau, 57, "mãe de rua na Cracolândia" há cerca de 30 anos, ia daqui para lá, de lá para cá, observando tudo. Ela mora numa das pensões que abriga toda a sorte de gente, usuários, pobres, miseráveis, gente que precisa se esconder por algum motivo, como foragidos. Muitos desses imóveis já começaram a ser demolidos pela prefeitura nesta terça-feira (23), e três pessoas ficaram feridas.

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Lúcia Moreau, moradora e usuária: críticas ao modelo de combate à Cracolândia
Imagem: Nelson Antoine/UOL

Lúcia conta que o consumo de drogas se iniciou aos 13 anos e já lhe rendeu 12 internações. "Fui a primeira patricinha da Cracolândia", brinca, citando que nasceu no bairro paulistano de classe média do Sumaré e cresceu em Higienópolis, bairro rico, onde estudou no colégio Sion, tradicional instituição paulistana tocada por religiosos católicos. Diz que morava na rua Rio de Janeiro, num edifício que o avô teria construído.

Afirma que estudou francês na faculdade de letras da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) por dois anos. "Eu falo francês, inglês e 'noiês'", diverte-se, sublinhando que seus três filhos se graduaram e que não perdeu contato com a família.

"[A dependência de drogas] É uma doença física, química e emocional, mas especialmente emocional. Não importa se eu morei em Higienópolis, se estudei no Sion, a doença é a mesma para todos", afirma Lúcia Moreau.

A despeito das adversidades e do vício, diz ter avançado do ponto de vista humano: "Hoje sou uma pessoa muito melhor".

No meio da confusão, durante a operação, diz que sua maior preocupação era saber onde estava a dentadura, pela qual diz ter pagado R$ 7.000.

É crítica de tudo o que foi feito até aqui na Cracolândia: "Espalhar 'noia' na cidade de São Paulo vai ajudar no quê?". E queixa-se da falta de investimento em pesquisa, em prevenção às drogas e do recurso excessivo destinado ao combate.

"Somos seres humanos"

Anderson Rodrigo Fernandes, 33, que mora sozinho na região do "fluxo" e circula agarrado ao grande urso de pelúcia rosa com que diz dormir abraçado, cobra respeito: "Somos seres humanos também, senhor. Já vi polícia oprimir demais. Tem que ver a pessoa em conjunto, com assistência social, conhecer a história dessa pessoa. Cada um sabe o que faz, senhor, mas precisa saber quem é. Eu falo por mim, senhor, e pelas pessoas que conheço: tem gente de bem aqui".

Para Anderson, há décadas por ali, deveria haver outra forma de encaminhamento do problema dos usuários: "Como vai querer fazer operação [de retirada] sem lugar para colocar? Você vai ter mais roubos, mais saques na cidade", avalia. E sugere: "Tinham que unir e colocar a gente num lugar decente. Vão nos internar e nos entupir ainda mais de remédios? Eu não quero".

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Beneficiário de programa defende manutenção: Corrigir o erro sem destruir
Imagem: Nelson Antoine/UOL

Marcos Antonio de Moura, 36, usuário de crack desde 1992 e beneficiário do programa De Braços Abertos, implementado pela gestão de Fernando Haddad (PT), cuja carteirinha faz questão de mostrar, defende o atendimento que recebeu até aqui: "O De Braços Abertos me concedeu um lugar para morar, assistência médica, dentista, meu descanso e minha alimentação", descreve.

"Não deve desmoronar tudo"

"O prefeito vai acabar mexendo em coisas que ele não vai conseguir consertar. Mexe no que está arrumado. Devia apenas procurar o erro [do que está em andamento] e consertar. Não deve desmoronar o que está construído", opina, falando sobre o encerramento do programa pelo prefeito João Doria Jr. (PSDB), anunciado no domingo (21), e sua substituição pelo programa Redenção. "Se tirar todo mundo do hotel, vai todo mundo para a rua, como vamos fazer?"

Moura vive num quarto de hotel nas proximidades, na rua Barão de Limeira, e divide o local com outras três pessoas. Nega acusações de mau uso do lugar, que diz ser na verdade uma espécie de central de serviços prestados pelo De Braços Abertos, em que se apoia.

Juntos dos usuários, recebidos com muitos afagos e abraços, estão os vira-latas Willi (pelo preto e curto), Petrusca (de pelo crespo e marrom) e Bibi (esbelta, com manchas marrons e pretas pelo corpo). São diletos companheiros dos usuários da Cracolândia e os protegem de possíveis agressões, além de distribuírem amor com fidelidade canina.

"Quando durmo na rua, a Willi dorme comigo e late sempre que alguém se aproxima", elogia Anderson. São melhores que muita gente? Todos respondem prontamente, em coro: "E como!".

"Tão oprimindo 'nóis'"

Na primeira baforada que a noite dá, já longe do quadrilátero que formava a Cracolândia, na esquina da avenida Rio Branco com a avenida Duque de Caxias, o casal Flávio Luís Gonçalves e Eliane Ferreira, expulso na operação da polícia no domingo após sete anos lá, se queixa: "Tão oprimindo 'nóis', tiraram até o colchão de 'nóis'", diz Flávio. "Foi uma covardia o que fizeram com a gente", ecoa a mulher. "Não tem capacidade de ir atrás do traficante e vem atrás do usuário. Falta de respeito com o ser humano."

Para o marido, "o prefeito não tem capacidade de ser homem" e "mexeu numa caixa de marimbondo". "Vou continuar fumando na rua, agora em outro lugar", avisa a mulher. E exibem os cachimbos que levam sob as cobertas coloridas que envolvem seus corpos magérrimos, única proteção contra o frio e chuva paulistanos.

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Usuários deixaram a região do "fluxo" e se espalharam por outras regiões do centro de São Paulo
Imagem: Nelson Antoine/UOL

Um pouco mais adiante na avenida Rio Branco, Francisco de Assis, 37, está agachado junto ao muro na esquina fumando pedra em seu cachimbo. Numa fala nervosa e confusa por causa do efeito da droga, diz ter começado a usar crack "por causa de uma mulher", Janete, que é enfermeira. E lança o desafio, quando instado a parar: "Quer me ajudar? Me dá um emprego".

Diz sofrer de esquizofrenia bipolar, doença para a qual deixou de tomar remédio. Conta que está há 9 meses e 12 dias morando pelas ruas, sem tomar banho há semanas, vestindo um casaco de couro preto esboroado e levando na mão sua única posse, uma mochila preta com algumas mudas de roupas.

"Com o dinheiro que vocês me dão, compro pedra. É isso o que acontece." Fala da vida nas ruas, do temor de ser emboscado e morto: "Os nazistas estão em São Paulo. Eles estão matando nordestinos. Põem sonífero e veneno na comida."

Um viciado em crack, também egresso da Cracolândia após a operação, se escora num telefone público, só os olhos e a ponta dos cabelos pintados de loiro aparecem sob a coberta colorida: "Tá 'moiado'", alerta na gíria, enquanto mira a longa fila da lotérica bem em frente.

"Espalhou o câncer"

No 3º DP (Distrito Policial), uma das delegacias que ficam na Cracolândia expandida, o delegado titular, Osvany Zanetta Barbosa, de óculos, cabelo curto e grisalho e dentes muito brancos, reconhece o movimento de dispersão dos usuários de crack para outras áreas da cidade: "Espalhou o câncer, mas era o que a gente, como polícia, podia fazer como primeiro passo". O delegado afirma que o problema não vai se resolver "de um dia para o outro" e dependerá de outras ações, sobretudo de saúde pública.

E se enfurece sobre possível abuso da força pela polícia na operação, alvo de críticas dos próprios usuários: "A polícia é injustiçada. A operação toda foi um sucesso. Não teve um único machucado. E vocês, da imprensa, só falam do lado ruim de tudo. Deveriam estar elogiando. Não é com flor que a gente ia tirar alguém de lá. Era um antro", defende, fazendo apelo à imprensa, que considera tratar a polícia como inimiga. "Quando a imprensa bate na polícia, bate no próprio para-choque." É que a polícia, no seu modo de ver, serviria também para protegê-la.

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Homem consome crack em rua do centro de São Paulo um dia depois da operação do domingo: com fim do "fluxo", consumo se espalhou para outras áreas
Imagem: Nelson Antoine/UOL