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200 euros por garota: Como uma rede de tráfico levou 33 brasileiras à prostituição na Itália

Getty Images
Imagem: Getty Images

Aliny Gama

Colaboração para o UOL, em Maceió

22/07/2017 04h00

O sonho de morar na Europa e ganhar salários em euros levou pelo menos 33 mulheres do Rio Grande do Norte para a Itália entre os anos de 2006 e 2009. Ao embarcar para um emprego como dançarina em casas de shows europeias, no entanto, elas se tornaram escravas sexuais num esquema ítalo-brasileiro que fazia as jovens viajarem endividadas para serem exploradas sexualmente.

O pivô dessa operação no Brasil era, segundo o Ministério Público Federal (MPF), o advogado Pedro Paulo de Andrade Netto, 57, então presidente do Sindicato dos Artistas do Rio Grande do Norte.

UOL entrou em contato com Netto por meio de ligações telefônicas e envio de mensagens pelo WhatsApp durante uma semana, mas até a publicação deste texto ele não se pronunciou sobre o assunto.

Ele usava seu cargo para recrutar mulheres bonitas, segundo a investigação. O MPF afirma que ele recebia, na época, 200 euros (cerca de R$ 725 em valores atuais) por cada mulher enviada para Itália e entre 5 e 20 euros por dia de trabalho delas no exterior.

A jovem Ana* foi uma das vítimas. Ela frequentou cursos de modelo e manequim, além de aulas de dança e de teatro por oito meses em uma agência que pertencia a Netto até receber a proposta para viajar. Mas, ao chegar à casa de shows onde se apresentaria na Itália com um grupo de danças folclóricas e samba, se sentiu enganada.

“Todas nós achamos que era só o trabalho de dançarina. Eu não achei que ia ver o que eu vi acontecendo: as garotas saindo (com homens para se prostituírem). Eu questionei na época e me explicaram o que era”, disse ela posteriormente à Justiça.

Encontros íntimos em público

Bruna* passou por um choque semelhante. A boate Morgana não tinha quartos para encontros íntimos. Funcionários estendiam cortinas em volta das mesas dos “clientes” para que eles mantivessem relações sexuais com as garotas de programa em mesas ou cadeiras no meio do salão.

“As relações sexuais aconteciam na frente de todo mundo, só colocavam um pano”, afirmou Bruna.

Os funcionários da boate diziam que os espaços eram para que seus clientes mantivessem conversas privadas – a um custo de 20 euros por minuto. Mas, na prática, eram uma alternativa para as jovens “atenderem” clientes sem sair do estabelecimento.

Muitas mulheres usavam essa opção para não pagar um “pedágio” para os aliciadores a fim de obter permissão de levar o “cliente” para outro local, fora da boate. A chamada “serata” custava às garotas entre 200 e 300 euros.

Dívidas

As vítimas tentavam economizar a maior quantidade de dinheiro possível para pagar seus aliciadores. Os criminosos afirmavam que elas tinham que quitar dívidas da viagem e da estadia na Itália.

“Elas sabiam que teriam uma dívida com os aliciadores, oriunda das passagens e outras despesas, mas a maior parte delas só soube do valor da dívida ao chegar na Itália”, disse o procurador do MPF Kleber Martins de Araújo.

Bruna disse que tinha que pagar pelo aluguel de um apartamento que dividia com três garotas, e também por uma “taxa de uso” dos prostíbulos e pela passagem aérea, além de custear seus gastos com alimentação. Segundo ela, o dinheiro que recebia como “salário” na boate era menor que o combinado no Brasil e nunca suficiente para pagar as dívidas.

“Cheguei a me prostituir porque eu queria pagar a passagem mais rápido e o que ganhava lá não dava para me manter”, afirmou. “No local de trabalho eu não podia me alimentar, só se o cliente pagasse ou se eu pagasse (pela comida)”.

Além disso, as jovens recebiam multas caso se recusassem a realizar determinadas tarefas.

Outra vítima, a jovem Gabriela* disse que Netto mentiu ao dizer que a prostituição era proibida na casa de shows em que ela trabalharia. Ela disse que logo ao chegar foi obrigada a dançar nua para clientes de um estabelecimento. Ao se negar, teve que pagar uma multa de 45 euros, descontada direto de seu salário.

Como funcionava o esquema

9.fev.2015 - Prostitutas caminham na região central de Roma, na Itália - FILIPPO MONTEFORTE / AFP - FILIPPO MONTEFORTE / AFP
9.fev.2015 - Prostitutas caminham na região central de Roma, na Itália
Imagem: FILIPPO MONTEFORTE / AFP

As investigações apontaram que Netto associou-se a um italiano em 2005 para “abastecer” prostíbulos da Itália com mulheres brasileiras.

“Como Pedro Paulo de Andrade Netto tinha contato com mulheres bonitas, na sua condição de presidente do Sindicato dos Artistas, ele tinha facilidade em convencer essas mulheres a irem para Itália com a proposta de vida boa, de salários em euro”, disse o procurador Araújo.

“Ele contava histórias de dançarinas bem-sucedidas, que tinham comprado imóveis e carros de luxo, para que as vítimas se sentissem tentadas a viajar”, afirmou o procurador.

“Eu estava mal, minha mãe tinha falecido e meu pai estava desempregado. Comentei com Pedro Paulo sobre as dificuldades financeiras que estava passando e ele disse que iria me ajudar, que ia conseguir um emprego bom”, disse Laura*, outra das aliciadas.

“Usando da minha fragilidade, ele falou que ia me levar para trabalhar como garçonete em uma boate na Itália, que eu ia ganhar em torno de R$ 15.000. Eu acreditei e aceitei o convite”.

De acordo com o MPF, Netto era o responsável pela logística prévia ao embarque das vítimas.

O condenado emitia, por meio do Sindicato dos Artistas, certificados profissionais de dançarinas para as jovens. Seu grupo criminoso também obtinha atestados de saúde e documentos traduzidos para o italiano para a confecção de contratos de trabalho na Itália.

Com esses documentos, conseguia obter vistos de trabalho e cobrava 200 euros de cada vítima pelo “serviço”, segundo dados do processo judicial.

Além disso, Netto era ainda o responsável por comprar as passagens aéreas para a Itália.

Investigações da Polícia Federal descobriram que o esquema fraudou 196 documentos de mulheres que estariam em listas para serem traficadas para Itália. Delas, 33 tiveram as viagens comprovadas para a Itália.

E-mails interceptados durante a investigação do caso mostraram que Netto montou um esquema no Brasil para preparar as garotas para a viagem e para lidar com a documentação.

Em uma dessas mensagens, logo após descrever fisicamente um grupo de quatro jovens que seriam mandadas à Itália, um membro do grupo dele relata alguns procedimentos:

“Todas antes de viajar vão tirar aparelhos dos dentes (...) O problema é que a maioria das garotas não têm fotos boas, aí atrasa porque tenho que marcar para tirar fotos. Aí você sabe como elas são, furam de última hora, mas até sexta terminaremos de organizar os grupos. Tem muitas meninas bonitas mesmo! Até sexta vão mais dois grupos!"

Condenações

Netto foi denunciado à Justiça em janeiro de 2016 por expedir certificados falsos de bailarinas em favor de 33 mulheres que seriam traficadas para a Itália, sem que elas tivessem tal qualificação nem se submetessem a nenhum tipo de teste para tal comprovação.

No dia 28 de junho deste ano, ele foi condenado a 7 anos e 2 meses de prisão pela Justiça Federal pelo crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual. 

Outras quatro pessoas acusadas de participar do crime foram absolvidas. São elas: a médica responsável por fornecer 196 atestados de saúde às mulheres; a tradutora oficial que preparava documentos do português para o italiano; um homem acusado de falsificar 196 documentos e o italiano acusado de intermediar contatos das casas de prostituição.

O italiano tinha uma condenação anterior por tráfico de pessoas no Brasil e havia sido preso na Itália por exploração sexual.

Ao condenar Netto, o juiz federal Walter Nunes da Silva Júnior, titular da 2ª Vara Federal no Rio Grande do Norte, destacou na sentença que o crime de exploração sexual atenta contra a vida humana e fere os princípios de valorização das pessoas. Ele responde em liberdade.

A reportagem não obteve contato com as jovens aliciadas, mas ao menos parte delas conseguiu reunir recursos para retornar ao Brasil e foram testemunhas importantes no processo judicial.

*Os nomes reais das vítimas foram substituído por nomes fictícios.