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Há todas as condições para radicalização do conflito, diz ex-chefe israelense sobre Gaza

24.jul.2014 - Israelenses choram durante funeral do sargento Daniel Pomerantz, próximo a Tel Aviv (Israel). Pomerantz foi morto enquanto lutava em Gaza - Oded Balilty/AP
24.jul.2014 - Israelenses choram durante funeral do sargento Daniel Pomerantz, próximo a Tel Aviv (Israel). Pomerantz foi morto enquanto lutava em Gaza Imagem: Oded Balilty/AP

Julia Amalia Heyer

25/07/2014 06h00Atualizada em 25/07/2014 10h23

Em uma entrevista para a "Spiegel", Yuval Diskin, ex-diretor do serviço de segurança interna de Israel, Shin Bet, fala sobre o atual confronto entre Israel e os palestinos, o que deve ser feito para obter a paz e a falta de liderança no Oriente Médio.

Yuval Diskin foi o diretor do serviço de segurança interna Shin Bet de Israel entre 2005 e 2011. Nos últimos anos, ele tornou-se um crítico das políticas do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Spiegel: Sr. Diskin, após 10 dias de ataques aéreos, o exército israelense lançou uma invasão por terra na Faixa de Gaza na semana passada. Por que agora? E qual é a meta da operação?

Diskin: Israel não tinha outra escolha a não ser aumentar a pressão, o que explica o uso de tropas terrestres. Todas as tentativas de negociação fracassaram até o momento. O exército agora está tentando destruir os túneis entre Israel e a Faixa de Gaza com um tipo de mini-invasão, também para que o governo possa mostrar que está fazendo algo. Seus eleitores estavam cada vez mais veementes na exigência da invasão. O exército espera que a invasão finalmente force o Hamas a aceitar um cessar-fogo. É em partes iguais uma ação pela ação e uma postura agressiva. Eles estão dizendo: nós não estamos atuando nas áreas residenciais; nós estamos apenas destruindo as entradas dos túneis. Mas isso, é claro, não mudará muito a situação desastrosa. Os foguetes estão armazenados nas áreas residenciais e também são disparados de lá.

Spiegel: O senhor está dizendo que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está sendo pressionado a agir pela direita?

Diskin:
A boa notícia para Israel é o fato de Netanyahu, o ministro da Defesa, Moshe Ya'alon e o chefe do Estado-Maior do Exército, Benny Gantz, não serem muito aventureiros. Nenhum deles realmente queria a invasão. Nenhum deles demonstra entusiasmo por reocupar a Faixa de Gaza. Israel não planejou essa operação. Israel foi arrastado para essa crise. Nós só podemos esperar que não vá além dessa invasão limitada e que não seremos forçados a expandir para as áreas povoadas.


Spiegel: O que acontecerá a seguir?

Diskin:
Israel agora é um instrumento nas mãos do Hamas, não o contrário. O Hamas não se importa se sua população sofre ou não sob os ataques, porque a população está sofrendo de qualquer modo. O Hamas realmente não se importa com suas próprias baixas. Eles querem conseguir algo que mude a situação em Gaza. Trata-se de uma situação realmente complicada para Israel. Seria preciso um a dois anos para tomar a Faixa de Gaza e destruir os túneis, os depósitos de armas e de munições passo a passo. Levaria tempo, mas do ponto de vista militar, é possível. Mas então teríamos 2 milhões de pessoas, a maioria refugiados, sob nosso controle e enfrentaríamos críticas da comunidade internacional.

Spiegel: Quão forte é o Hamas? Por quanto tempo pode continuar disparando foguetes?

Diskin:
Infelizmente, nós fracassamos no passado em desferir um golpe debilitante contra o Hamas. Durante a Operação Chumbo Fundido, no final de 2008 e 2009, nós chegamos perto. Nos últimos dias da operação, o Hamas esteve muito próximo de um colapso; muitos deles estavam raspando suas barbas. Agora, a situação mudou em prol dos islamitas. Eles aprofundaram os túneis; eles são mais complexos e com dezenas de quilômetros de extensão. Eles tiveram sucesso em esconder os foguetes e as pessoas que lançam os foguetes.Eles podem lançar foguetes a quase qualquer hora que querem, como se pode ver.

Spiegel: Israel não está empurrando os palestinos para os braços do Hamas?

Diskin:
Realmente parece que sim. A população na Faixa de Gaza não tem nada a perder no momento, assim como o Hamas. E esse é o problema. Enquanto Mohamed Morsi da Irmandade Muçulmana esteve no poder no Egito, as coisas foram ótimas para o Hamas. Mas então o exército egípcio assumiu e, em questão de poucos dias, o novo regime destruiu a economia dos túneis entre Gaza e a Península do Sinai, que era crucial para o Hamas. De lá para cá, o Hamas está sob imensa pressão; ele não consegue nem mesmo pagar os salários de seus funcionários públicos.
Spiegel: Todas as tentativas de mediação fracassaram. Quem pode impedir esta guerra?

Diskin:
Nós vimos na mais recente tentativa de cessar-fogo que o Egito, que é o mediador natural na Faixa de Gaza, não é o mesmo Egito de antes. Pelo contrário, os egípcios estão usando sua importância como negociadores para humilhar o Hamas. Não dá para dizer ao Hamas no momento: "Olhe, primeiro vocês precisam parar tudo e então conversaremos com vocês 48 horas depois".

Spiegel: E quanto a Israel falar diretamente com o Hamas?

Diskin:
Isso não seria possível. Realmente, apenas os egípcios podem mediar de forma crível. Mas eles precisam colocar uma oferta mais generosa à mesa: a abertura da travessia de fronteira de Rafah ao Egito, por exemplo. Israel também deve fazer concessões e permitir uma maior liberdade de movimento.

Spiegel: Esses são os motivos para o Hamas ter provocado a atual escalada?

Diskin:
O Hamas também não queria essa guerra inicialmente. Mas como costuma acontecer no Oriente Médio, as coisas aconteceram de modo diferente. Começou com o rapto de três adolescentes israelenses na Cisjordânia. Pelo que li e pelo que sei sobre a forma como o Hamas atua, eu acho que o birô político do Hamas foi pego de surpresa. Parece que não foi coordenado ou dirigido por eles.

Spiegel: Netanyahu, entretanto, alegou que foi e usou como justificativa para medidas duras contra o Hamas na Cisjordânia, medidas que também visaram o governo conjunto do Hamas-Fatah.

Diskin:
Após o rapto dos adolescentes, o Hamas entendeu imediatamente que tinha um problema. Enquanto a operação do exército se expandia na Cisjordânia, os radicais na Faixa de Gaza começaram a lançar foguetes contra Israel e a força aérea fez incursões em Gaza. O Hamas não tentou deter os foguetes como fez no passado. Então houve o rapto e assassinato do menino palestino em Jerusalém, e isso lhes deu mais legitimidade para atacar Israel.


Spiegel: Como o governo deveria ter reagido?

Diskin
: Foi um erro de Natanyahu atacar o governo de unidade entre o Hamas e o Fatah sob a liderança do presidente palestino Mahmoud Abbas. Israel deveria ter sido mais sofisticado na forma de reagir. Nós deveríamos ter apoiado os palestinos, porque queremos a paz com todos, não com apenas dois terços ou metade dos palestinos. Um acordo com um governo de unidade seria mais sofisticado do que dizer que Abbas é um terrorista. Mas esse governo de unidade deve aceitar todas as condições do Quarteto do Oriente Médio. Ele precisa reconhecer Israel, renunciar ao terrorismo e reconhecer todos os acordos anteriores entre Israel e os palestinos.

Spiegel: A possibilidade de uma terceira Intifada foi mencionada repetidas vezes nos últimos dias, provocada pela violência em andamento na Faixa de Gaza.

Diskin:
Ninguém pode prever uma Intifada, porque ela não é algo planejado. Mas eu alertaria contra acreditar que os palestinos ficarão pacíficos devido à exaustão com a ocupação. Eles nunca aceitarão o status quo da ocupação israelense. Quando as pessoas perdem a esperança de melhoria de sua situação, elas radicalizam. Essa é a natureza dos seres humanos. A Faixa de Gaza é o melhor exemplo disso. Todas as condições estão presentes para uma explosão. Eu já estive nessa situação tantas vezes na minha vida que posso quase senti-la na ponta dos meus dedos.

Spiegel: Há não muito tempo, as mais recentes negociações fracassaram –de novo.

Diskin:
Sim, sem causar surpresa. Nós temos um problema hoje que não tínhamos em 1993, quando o primeiro Acordo de Oslo foi negociado. Na época nós tínhamos líderes reais, e não temos agora. Yitzhak Rabin era um deles. Ele sabia que pagaríamos um preço, mas mesmo assim ele decidiu seguir em frente com as negociações com os palestinos. Nós também tínhamos um líder no lado palestino, em Iasser Arafat. Será muito difícil chegar à paz com Abbas, mas não porque ele não a queira.

Spiegel: Por quê?

Diskin:
Abbas, que conheço muito bem, não é um líder real, assim como Netanyahu também não é. Abbas é uma boa pessoa em muitos aspectos; ele é contra o terror e tem coragem suficiente para dizer. Mesmo assim, dois não-líderes não podem chegar à paz. Além disso, os dois não gostam um do outro, não há confiança entre eles.

Spiegel: O secretário de Estado americano, John Kerry, buscou ser um mediador entre os dois.

Diskin:
Sim, mas desde o início, a chamada iniciativa Kerry foi uma piada. A única forma de resolver este conflito é uma solução regional com a participação de Israel, dos palestinos, Jordânia e Egito. O apoio de países como a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e talvez da Turquia também seria necessário. Esta é a única forma de considerar todos as exigências e resolver todos os problemas. E precisamos de mais tempo, de pelo menos cinco anos –e mais para implantar tudo passo a passo.



Spiegel: Por que Netanyahu não está trabalhando visando um acordo desses, preferindo se concentrar nos riscos apresentados por uma bomba nuclear iraniana?

Diskin:
Eu sempre aleguei que o Irã não é o verdadeiro problema de Israel. É este conflito com os palestinos, que já durou demais e que está se intensificando de novo. O conflito é, em combinação com a ocupação israelense da Cisjordânia, o maior risco à segurança do Estado de Israel. Mas Netanyahu transformou a invocação de uma ameaça existencial por parte do Irã em seu mantra, de uma forma messiânica. E é claro que ele extraiu lucro político disso. É muito mais fácil criar consenso a respeito de uma ameaça existencial iraniana do que com um acordo com os palestinos. Porque nisso, Netanyahu tem um problema com seu eleitorado.

Spiegel: O senhor alertou que os assentamentos na Cisjordânia em breve se tornarão irreversíveis e que impossibilitarão a solução de dois Estados.

Diskin:
Nós estamos atualmente muito próximos do ponto sem retorno. O número de colonos está aumentando e uma solução para esse problema já é quase impossível, de um ponto de vista puramente logístico, mesmo que exista a vontade política. E este governo está construindo mais do que qualquer governo construiu no passado.

Spiegel: Uma solução para o conflito ainda é possível?

Diskin:
Nós temos que ir passo a passo, nós precisamos de muitos pequenos sucessos. Nós precisamos de compromisso por parte do lado palestino e a aceitação das condições do Quarteto do Oriente Médio. E Israel deve suspender imediatamente qualquer atividade de assentamento fora dos grandes blocos de assentamentos. Caso contrário, a única possibilidade é a de um único Estado compartilhado. E essa é uma alternativa muito ruim.

Spiegel: Mohammed Abu Chidair, o adolescente assassinado por extremistas de direita israelenses, foi reconhecido como sendo uma vítima de terror. Por que o serviço de segurança Shin Bet de Israel não é tão vigoroso contra o terror israelense quanto é com o terror árabe?

Diskin:
Nós investimos muitos meios e capacidades visando cuidar desse assunto, mas nós não tivemos muito sucesso. Nós não temos as mesmas ferramentas para combater o extremismo judaico ou mesmo terroristas quanto temos quando estamos enfrentando, por exemplo, extremistas palestinos. Para os palestinos nos territórios ocupados, o regime militar é aplicado, enquanto a lei civil se aplica aos colonos. O maior problema, entretanto, é levar essas pessoas a julgamento e colocá-las na prisão. Os tribunais israelenses são muito rigorosos com o Shin Bet quando os réus são judeus. Algo realmente dramático precisa acontecer para que as autoridades enfrentem o terror judaico.

Spiegel: Um legislador do partido Lar Judeu, pró-colonos, escreveu que o inimigo de Israel é "cada indivíduo palestino".

Diskin:
O ódio e esse incitamento eram aparentes antes mesmo desse terrível assassinato. O fato de ter realmente ocorrido é inevitável. Pode soar como um paradoxo, mas mesmo nos homicídios há diferenças. Você pode atirar em alguém e esconder seu corpo sob pedras, como fez o assassino dos três adolescentes judeus. Ou pode colocar óleo nos pulmões e incendiá-lo vivo, como aconteceu com Mohammed Abu Chidair. (...) Eu nem consigo pensar no que essas pessoas fizeram. Pessoas como Naftali Bennett criaram essa atmosfera juntamente com outros rabinos e políticos extremistas. Eles estão agindo irresponsavelmente. Eles estão pensando apenas no seu eleitorado, não em termos dos efeitos de longo prazo à sociedade israelense, ao Estado como um todo.