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Governo russo criou recentemente um exército informal de vingadores

O político de oposição russo Boris Nemtsov - Maxim Shipenkov/Efe
O político de oposição russo Boris Nemtsov Imagem: Maxim Shipenkov/Efe

Masha Gessen

03/03/2015 06h00

Pessoas estão sendo mortas em nome do Kremlin, tendo como fundo o Kremlin, simplesmente por ousarem se opor ao Kremlin.

A coisa mais assustadora a respeito do assassinato de Boris Nemtsov é que ele próprio não assustava ninguém. "Ele não era uma ameaça à atual liderança russa e a Vladimir Putin", disse o secretário de imprensa do presidente russo, Dmitri Peskov, assustadoramente repetindo os comentários feitos pelo presidente em 2006, quando a jornalista de oposição Anna Politkovskaya foi morta. Com isso, Peskov quis dizer que o Kremlin não matou Nemtsov, um ex-vice-primeiro-ministro, que foi morto a tiros no centro de Moscou na noite de sexta-feira.

É bem provável que ninguém no Kremlin de fato tenha ordenado a morte –e isso é parte do motivo para o assassinato de Nemtsov marcar o início de outro período novo e assustador na história russa. O Kremlin criou recentemente um exército informal de vingadores, que acreditam estar agindo no interesse do país, sem receber qualquer instrução explícita. Apesar de sua falta de poder político, Nemtsov era o primeiro alvo lógico dessa força ameaçadora.

A Rússia é um país em guerra –ela está lutando contra a Ucrânia há um ano– e como qualquer país em guerra, ela concentra grande parte de seu esforço de retórica na oposição doméstica. A própria palavra "oposição" é enganadora: ela sugere ter acesso à mídia e aos mecanismos eleitorais e sociais, apesar desse acesso ter deixado de existir na Rússia. Mais precisamente, há vários indivíduos na Rússia que são capazes de reunir pequenos grupos de apoiadores, promovendo uma ação eleitoral local limitada, transmitindo mensagens por meio do minúsculo resquício da mídia independente e, ocasionalmente, organizando protestos de rua.

No pequeno espaço disponível à oposição russa, Nemtsov ocupava um lugar único. Ele se tornou ativo na política durante a perestroika e, em 1991, quando Nemtsov tinha 32 anos, o presidente Boris Yeltsin o nomeou governador da Nizhny Novgorod Oblast, uma importante região industrial no rio Volga. Nemtsov era uma das pessoas mais jovens entre os políticos dos anos 90, e parecia representar a nova era: ele não vinha do Partido Comunista, ele defendia reforma política e econômica e seu sobrenome indicava que era judeu, um fato que, rompendo com o costume da era soviética, ele não tentava esconder. Em 1997, Yeltsin pediu para que ele viesse a Moscou para se juntar ao seu gabinete e falou-se sobre ele sucedê-lo como presidente.

Mas o presidente russo enfermo parecia incapaz de abrir mão do poder e de dirigir o país. Ele escolhia sucessores potenciais de modo rápido e os descartava ainda mais rapidamente, alienando todo mundo com algum capital político. Em 1999, Yeltsin finalmente se decidiu por um ex-agente da KGB chamado Vladimir Putin, colocando seu sucessor original, Nemtsov, no caminho para a oposição.

Essa estrada não foi fácil e nem direta para Nemtsov. Primeiro, ele tentou dialogar com Putin: ele chefiava um partido que contava com cadeiras no primeiro Parlamento da era Putin e até mesmo lançou um candidato à presidência. Mas à medida que Putin reorganizava a Rússia em um país autoritário, Nemtsov foi forçado a abandonar o que se passava por uma política eleitoral, e se tornou um dos primeiros políticos do establishment a soar o alarme sobre a natureza do regime de Putin.

Por anos, quase ninguém tinha interesse pelo que Nemtsov tinha a dizer. Ele e seu punhado de aliados ficavam do lado de fora das estações de metrô de Moscou distribuindo folhetos com seus relatos de corrupção no alto escalão. Eles eram de leitura difícil: o texto era cansativo, lembrando propaganda política do passado. E os russos pareciam estar vivendo muito bem para se interessarem pela qualidade do seu governo. Quando eles finalmente começaram a prestar atenção à corrupção, eles passaram a dar ouvidos a um homem quase duas décadas mais jovem que Nemtsov, o blogueiro Aleksei Navalny, que espalhava a mensagem de modo mais moderno.

Quando os protestos na Rússia passaram a ocorrer em dezembro de 2011, Nemtsov descobriu que era visto como uma pessoa antiquada. Em 6 de maio de 2012, quando a polícia reprimiu um protesto legal pacífico, Nemtsov promoveu um protesto sentado improvisado ao pé da Grande Ponte de Pedra, que fica perto do Kremlin, com um grupo de homens jovens o bastante para serem seus filhos. Os protestos fracassaram, mas Nemtsov permaneceu com eles. Ele era o principal instigador de uma marcha de protesto planejada para 1º de março em Moscou. Após a morte dele, os organizadores remanescentes trocaram os planos da marcha por uma vigília em memória de Nemtsov.

Apesar de verdadeiro que essa atividade não chega a ameaçar o controle de Putin do poder, Nemtsov estava presente em todas as listas de "inimigos da Rússia" na internet, circuladas pelos apoiadores do Kremlin.

Nos quase três anos desde que Putin retornou à presidência, e especialmente no ano que se passou desde que a Rússia anexou a Crimeia, o Kremlin tem cada vez mais se concentrado nos inimigos internos. Um novo movimento chamado Anti-Maidan marchou por Moscou há duas semanas, pedindo violência contra a "quinta coluna". Pelo menos um dos cartazes na marcha apontava Nemtsov como o organizador da revolução ucraniana.

Menos de uma semana após aquela marcha e pouco antes daquela que estava organizando, Nemtsov foi baleado enquanto caminhava por uma ponte que cruza o rio Moscou bem em frente ao Kremlin. Ela está sob constante vigilância por guardas e por câmeras. A mensagem foi clara: pessoas serão mortas em nome do Kremlin, à plena vista do Kremlin, tendo como fundo o Kremlin, simplesmente por ousarem se opor ao Kremlin.

*Masha Gessen é autora, mais recentemente, de "Words Will Break Cement: The Passion of Pussy Riot".

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