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Enganados em terra, vítimas de abusos ou mortos no mar

Hannah Reyes/The New York Times
Imagem: Hannah Reyes/The New York Times

Ian Urbina

Em Linabuan Sur (Filipinas)

10/11/2015 06h00

Quando Eril Andrade deixou a pequena aldeia de Linabuan Sur, ele tinha saúde e esperava ganhar o suficiente em um navio pesqueiro em alto mar para poder trocar o telhado que apresentava vazamento na casa de sua mãe.

Vários meses depois, seu corpo foi enviado para casa em um caixão. Ele estava sem um olho e o pâncreas, além de coberto de cortes e hematomas, que o laudo da autópsia concluiu terem sido causados antes de sua morte.

Andrade, 31 anos, que morreu em fevereiro de 2011, e quase uma dúzia de outros homens em sua aldeia foram recrutados por uma “agência de recrutamento de tripulação” ilegal, enganados com falsas promessas de dobro do salário que ganhavam e então enviados para um apartamento em Cingapura, onde ficaram trancados por semanas, segundo entrevistas e depoimentos legais realizados por promotores locais.

Assim que embarcavam, os homens enfrentavam dias de trabalho de 20 horas e agressões físicas brutais, apenas para voltarem para casa sem remuneração e profundamente endividados em milhares de dólares devido às despesas iniciais, dizem os promotores.

“São mentiras e enganação em terra, depois espancamentos e morte no mar, ou vergonha e dívida quando esses homens voltam para casa”, disse Shelley Thio, uma integrante do conselho diretor do Transient Workers Count Too (Trabalhadores Temporários Também Contam), um grupo de defesa dos trabalhadores imigrantes em Cingapura. “E as agências de recrutamento de tripulação são as responsáveis por isso.”

A Step Up Marine Enterprise, a empresa com sede em Cingapura que recrutou Andrade e outros aldeões, apresenta uma histórico bem documentado de problemas, segundo um exame de autos judiciais, boletins de ocorrência policiais e processos em Cingapura e nas Filipinas. Em episódios ao longo de duas décadas, a empresa esteve ligada ao tráfico humano, violência física severa, negligência, recrutamento fraudulento e não pagamento de centenas de marinheiros na Índia, Indonésia, Maurício, Filipinas e Tanzânia.

Mesmo assim, seus proprietários em grande parte escaparam impunes. No ano passado, por exemplo, os promotores abriram o maior caso de tráfico humano na história do Camboja, envolvendo mais de 1.000 pescadores, mas não contava com jurisdição para indiciar a Step Up por recrutá-los. Em 2001, a Suprema Corte das Filipinas repreendeu duramente a Step Up e uma empresa parceira em Manila por enganarem sistematicamente homens, os enviando conscientemente para empregadores abusivos e os ludibriando, mas os proprietários da Step Up não enfrentaram nenhuma penalidade.

As autoridades filipinas indiciaram 11 pessoas ligadas à Step Up por tráfico humano e pelo recrutamento ilegal de Andrade e outros filipinos. Mas apenas uma pessoa, supostamente uma culpada de baixo escalão, foi presa e provavelmente será julgada: Celia Robelo, 46, que enfrenta uma pena potencial de prisão perpétua pelo que os promotores dizem ter sido um esforço de recrutamento no qual obteve, no máximo, US$ 20 (cerca de R$ 76) em comissões.

A história de Andrade foi levantada por meio de entrevistas com familiares, outros marinheiros recrutados em sua aldeia ou nas proximidades, policiais, advogados e trabalhadores de ajuda humanitária em Jacarta, Manila e Cingapura. Ela destaca as ferramentas –dívida, logro, medo, violência, vergonha e laços familiares– usadas para recrutar os homens, prendê-los e abandoná-los no mar, às vezes por anos, sob condições adversas.

Em meados de 2010, Andrade estava ficando impaciente. Ele estudou criminologia na faculdade na esperança de se tornar policial, sem saber que havia uma exigência de altura mínima de 1,60 metro. Ele tinha 5 centímetros a menos. Seu emprego como vigia noturno em um hospital pagava menos de US$ 0,50 (R$ 1,90) por hora.

Quando um primo lhe falou sobre um possível trabalho no mar, Andrade o viu como uma chance de viajar pelo mundo e ganhar dinheiro suficiente para ajudar sua família. Ele foi apresentado a Robelo, que os promotores dizem que era a recrutadora local da Step Up. Ela disse que o salário era de US$ 500 (cerca de R$ 1.900) por mês, além de uma ajuda de custo de US$ 50 (cerca de R$ 190), disseram seu irmão e sua mãe à polícia.

Andrade deu cerca de US$ 200 (cerca de R$ 760) para “taxas de processamento” e partiu para Manila. Ele pagou mais US$ 318 (cerca de US$ 1.208) antes de voar para Cingapura em setembro de 2010. Um representante da empresa o recebeu no aeroporto e o levou para o escritório da Step Up, no distrito de Chinatown de Cingapura.

Se a experiência de Andrade foi semelhante as de outros homens filipinos entrevistados pelo “The New York Times”, ele deve ter dito que havia um erro: seu salário seria de menos da metade do que lhe tinha sido prometido. E após múltiplas deduções, o salário mensal de US$ 200 encolheria ainda mais.

Meia dúzia de outros homens da aldeia de Andrade, que os promotores disseram que também foram recrutados pela Step Up, lembrou em entrevistas que a papelada passava voando em um turbilhão de cálculos rápidos e termos desconhecidos (“confisco de passaporte”, “taxas obrigatórias”, “ganhos paralelos”).

Primeiro, eles eram obrigados a assinar um contrato, eles disseram, que geralmente estipulava um compromisso vinculante de três anos, sem pagamento de hora extra, sem licença de saúde, dias de trabalho de 18 a 20 horas, semanas de trabalho de seis dias e deduções mensais de US$ 50 em alimentação, além de dar aos capitães plena liberdade de transferir os tripulantes para outros navios. Os salários seriam pagos não mensalmente às famílias dos trabalhadores, mas apenas após o término do contrato, uma prática que é ilegal nas agências registradas.

Em pé em um barco de madeira de 10 metros em uma noite recente, a cerca de 65 quilômetros da costa das Filipinas, Condrad Bonihit, um amigo de Andrade, explicou por que os aldeões pobres se deixam seduzir pelas agências ilegais de recrutamento de tripulação.

“É preciso dinheiro para ganhar dinheiro”, disse Bonihit. Para conseguir empregos legalmente é preciso um curso em uma escola técnica credenciada que pode custar cerca de US$ 4 mil (cerca de R$ 15.200), ele disse, muito mais do que a maioria dos aldeões pode pagar. E os salários oferecidos pela Step Up costumam ser quase o dobro do que os homens ganhariam por meio de uma empresa credenciada.

No mar, entretanto, a realidade é diferente das promessas em terra, disse Bonihit, acrescentando que durou 10 meses no emprego que obteve por meio da Step Up. Quando as surras semanais em tripulantes se tornaram demais para suportar, ele abandonou seu navio no porto. Com a ajuda de missionários, ele voou de volta para casa, ele disse.

“Você parte orgulhoso”, ele disse sobre sua experiência, “e volta envergonhado”.

Os parentes de Andrade dizem que perderam contato com ele logo depois de receberam sua última mensagem de texto.

Depois que Andrade morreu, representantes da Step Up e da Hung Fei Fishery Company, a proprietária do barco pesqueiro taiwanês no qual ele trabalhava, ofereceram pagar à família dele cerca de US$ 5 mil (cerca de R$ 19 mil), segundo uma carta de 2012 da embaixada das Filipinas em Cingapura. A família recusou, em vez disso impetrando uma queixa contra a Step Up em novembro de 2011 junto ao Ministério do Trabalho de Cingapura. As autoridades do ministério e da força-tarefa antitráfico humano do governo disseram no mês passado que estão aguardando pelo pedido formal do governo filipino antes de investigarem.

Policiais e promotores na província de Andrade, Aklan, expressaram frustração com o que consideram a falta de resposta das autoridades federais em Manila. Celso J. Hernandez Jr., um advogado da Administração Filipina de Empregos no Exterior, a agência responsável por proteger os trabalhadores filipinos enviados ao exterior, disse não ter registro sobre a morte de Andrade ou sobre a Step Up. “As agências ilegais de recrutamento de tripulação são invisíveis para nós”, ele disse. A força-tarefa antitráfico humano das Filipinas não respondeu aos pedidos de comentários.

A polícia e as autoridades de pesca taiwanesas disseram não ter registros de terem interrogado Shao Chin Chung, o capitão do navio de Andrade, sobre a morte dele. O navio, o Hung Yu 212, foi citado por pesca ilegal em 2000, 2011 e 2012, segundo as comissões que regulam a pesca de atum nos oceanos Índico e Atlântico. Uma secretária da Hung Fei Fishery Company, com sede em Kaohsiung, Taiwan, disse recentemente que o proprietário estava viajando e não estava disponível para responder perguntas. Esforços para entrevistar outros tripulantes foram malsucedidos.

Em 6 de abril de 2011, o cadáver da Andrade chegou a Cingapura no Hung Yu 212. O dr. Wee Keng Poh, o médico legista da Autoridade de Ciências de Saúde de Cingapura, realizou uma autópsia seis dias depois. Ele concluiu que a causa da morte foi miocardite aguda, uma doença inflamatória no coração. Seu laudo deu poucos detalhes adicionais.

O corpo foi então enviado às Filipinas, onde o dr. Noel Martinez –o médico legista da capital provincial– realizou uma segunda autópsia. Ele discordou da primeira, em vez disso citando ataque cardíaco como causa da morte. A autópsia de Martinez também apontou extensos hematomas e cortes inexplicados, causados antes da morte, na testa, lábios superior e inferior, nariz, peito direito e axila direita de Andrade.

Balançando a cabeça, Emmanuel Concepcion, um amigo de Andrade, disse saber como são as condições nos navios pesqueiros que passam longos períodos em alto-mar e duvida que Andrade morreu de causas naturais. Após ser recrutado pela Step Up, Concepcion também trabalhou em um navio taiwanês de pesca de atum, no Atlântico Sul, mas abandonou o trabalho depois que o cozinheiro matou a facadas o capitão, que espancava rotineiramente os tripulantes.

Ao ser perguntado qual achava que teria sido a causa mais provável de morte de seu amigo, Concepcion disse simplesmente: “Violência”.