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Por que políticos que batem em mulher continuam a ser eleitos?

Gabriela Voskelis

Do UOL, no Rio*

19/11/2015 06h00

“A sociedade ainda tolera e enxerga a violência contra a mulher de uma forma naturalizada.” Com essa frase, a promotora Silvia Chakian, coordenadora do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica) do Ministério Público de São Paulo, tenta explicar o porquê de casos de agressão a mulheres, como o do secretário de governo da Prefeitura do Rio de Janeiro, Pedro Paulo (PMDB), gerarem pouca indignação geral. Levantamento feito pelo UOL mostra que, de cinco casos de agressão a mulheres, apenas um vereador teve o mandato cassado por conta da violência doméstica.

O caso do secretário carioca --principal nome cotado para a sucessão à prefeitura no ano que vem-- veio à tona há pouco mais de um mês, em reportagem da revista “Veja” que relatava uma briga entre Pedro Paulo e a sua ex-mulher, Alexandra Marcondes, em fevereiro de 2010, quando ela teria descoberto uma traição do secretário. Em depoimento à polícia, Alexandra contou que Pedro Paulo a agrediu com socos, chutes e quebrou um de seus dentes. Há um laudo do IML (Instituto Médico Legal) comprovando os ferimentos.

Mesmo quando o secretário admitiu a agressão pela primeira vez, em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, tanto o PMDB quanto o prefeito do Rio, Eduardo Paes, vieram em sua defesa.

O PMDB afirma que "não cogita outro nome para a sucessão do prefeito Eduardo Paes que não seja o do secretário Pedro Paulo". Paes, maior defensor da candidatura em 2016, também afirma que o secretário "já fez os "esclarecimentos necessários": "O secretário Pedro Paulo já fez as explicações de um assunto familiar. Deve ser muito difícil na vida pública ter que fazer explicações familiares, de assuntos de suas relações pessoais de maneira pública.”

“O prefeito usou um raciocínio que já é totalmente ultrapassado: em briga de marido e mulher não se mete a colher. Na realidade, uma das lutas do movimento feminista foi desfazer esse ditado, que era perverso”, explica a socióloga e coordenadora executiva da ONG Cepia, Jacqueline Pitanguy, que atua na defesa dos direitos da mulher. “O que acontecia entre um homem e uma mulher não era passível de um inquérito, de uma proteção à vítima, nem da Justiça. Mas a Constituição de 1988 já reconhece o dever do Estado em atuar para coibir a violência familiar.”

O prefeito usou um raciocínio que já é totalmente ultrapassado: em briga de marido e mulher não se mete a colher
Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cepia

Corrupção não pode

A promotora Silvia lembra que outros casos, como de corrupção ou crimes como tráfico de drogas, podem levar políticos a perderem seus cargos públicos, mas é raro que isso aconteça devido a uma denúncia de violência doméstica.

“Pra essa sociedade, que ainda é patriarcal e com expressões machistas, bater em mulher não é tão grave assim. Grave é talvez a corrupção, um roubo à mão armada, um tráfico de entorpecentes. Mas agredir a mulher não é tão grave assim”, ironiza. “Não significa que ele não possa ser um bom político.”

E isso não ocorre, segundo ela, apenas na esfera política. “Se a gente pensar fora do âmbito de políticos, a gente tem o episódio do Dado Dollabela, que pouco depois de ter sido denunciado e condenado em segundo grau, ele foi eleito também --porque foi o mais votado-- para ganhar um prêmio de R$ 1 milhão em um programa de reality show.”

Repetição e negação

Quase um mês após a primeira reportagem sobre as agressões, veio à tona um segundo caso: em dezembro de 2008, o secretário espancou Alexandra com socos no rosto e no corpo, conforme o registro de ocorrência 6304/2008, lavrado na 43ª Delegacia de Polícia, na cidade de São Paulo.

Quem não tem uma briga dentro de casa?
Pedro Paulo, secretário de governo da Prefeitura do Rio

Pedro Paulo e Alexandra então concederam uma entrevista coletiva na qual afirmavam que as agressões foram pontuais e que o secretário nunca foi um homem violento. “Quem não tem uma briga dentro de casa? Quem não tem um descontrole? Quem não exagera numa discussão? Fomos um casal como qualquer outro. Quem não passa isso? Quem às vezes não perde o seu controle? Agora não achar que isso possa ser uma coisa normal na nossa vida'', afirmou o secretário na ocasião. “Vocês transformaram a nossa vida num inferno”, completou a ex agredida.

“No caso dela fica muito clara a pressão à qual ela foi submetida: de se culpar pela situação, de minimizar o comportamento do agressor”, diz Silvia, explicando que é muito comum mulheres denunciarem os agressores e depois voltarem atrás. “São vários casos de retratação. Que pressões essas mulheres receberam? O ciclo da violência se repete e vai se tornando cada vez mais grave. Tem mulheres que morrem dando essa segunda chance.”

Para Jacqueline, o fato de haver ao menos dois registros oficiais das agressões configura um quadro de violência doméstica sistemática. “Ele se enquadra claramente no perfil da violência doméstica, que é uma violência de repetição. Com um gesto você pode desfigurar a mulher fisicamente, ou pode fazer uma ferida emocional nela que vai pro resto da vida”, afirma.

Reação

Tanto Jacqueline quanto Silvia, no entanto, enxergam de forma positiva a reação das mulheres jovens no Rio de Janeiro ao noticiário envolvendo o secretário. “Foi um despertar da sociedade para essas questões, que ainda são um grande tabu. É uma geração muito mais consciente dos seus direitos, muito mais empoderada, para usar a palavra da moda”, diz Silvia.

Jacqueline concorda, lembrando que na última semana, durante protesto contra o projeto de lei de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) que dificulta o aborto legal em caso de estupro, as agressões de Pedro Paulo também foram pauta: “Hoje, não passou batido, não passou em branco. Houve uma reação, está havendo uma reação. Há um feminismo renascendo, sobretudo na juventude.”

A idealizadora da hashtag #agoraéquesaoelas e do manifesto Não Tem Conversa acredita que essa seja uma luta para "construir um novo mundo, um novo normal, onde esse tipo de violência é inaceitável". "E é inaceitável que alguém com isso na sua biografia ocupe um cargo público", afirma.

*Colaborou Paula Bianchi