"É descaso e ignorância", diz toxicologista sobre o fato de o Brasil não ter antídoto para cianeto
A tragédia de Santa Maria (RS) trouxe à tona uma série de questões sobre a segurança dos estabelecimentos e também o atendimento a vítimas de grandes incêndios. Uma delas é por que foi preciso trazer dos Estados Unidos uma substância tão simples - uma vitamina B injetável - para atender os pacientes que, segundo exames, foram intoxicados com cianeto?
"É descaso e ignorância", resume o toxicologista Anthony Wong, diretor do Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Segundo ele, é inadmissível que o país não tenha a substância e que seu uso não seja difundido entre médicos e socorristas, como acontece em outras partes do mundo.
A hidroxocobalamina, que faz parte do complexo B, é usada em altas concentrações como antídoto para o cianeto. O gás, o mesmo que já foi usado no extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas, é subproduto da queima de diversos componentes usados na indústria, como o plástico, o acrílico e a espuma de poliuretano. Segundo os peritos que investigam o incêndio em Santa Maria, essa última foi usada no isolamento acústico da boate Kiss.
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É de estranhar que existam tantos produtos no mercado capazes de exalar um gás letal ao pegar fogo - da fórmica usada em residências aos colchões de espuma mais baratos. Mas o cianeto também pode ser gerado ao se queimar seda, por exemplo. E a substância (não o gás) também é encontrada naturalmente em caroços de pêssego e sementes de maçã. "Uma das principais formas de intoxicação por cianeto no Brasil é pelo consumo de mandioca brava", comenta Wong, que já atendeu dezenas de casos desse tipo.
Capaz de matar em poucos minutos, o cianeto bloqueia a cadeia respiratória das células, impedindo que o oxigênio chegue aos órgãos e tecidos. Quando usada logo após a exposição, a hidroxocobalamina salva vidas. "O efeito é tão rápido que parece até milagroso", conta Wong. Mas isso não é algo que os médicos aprendem na escola: "São poucas as faculdades que oferecem curso de toxicologia e, nas que têm, a matéria é opcional".
Na França, a hidroxocobalamina é utilizada há decadas pelos socorristas em casos de incêndio, sem que seja necessário comprovar a intoxicação por cianeto com exames, que demoram para ser concluídos. Como os benefícios de administrar a terapia logo superam, e muito, os efeitos colaterais, os socorristas usam o antídoto sem pestanejar.
Nos Estados Unidos, a medida também já faz parte do protocolo de atendimento, segundo o médico Cristiano Franke, presidente regional da Sociedade de Terapia Intensiva do Rio Grande do Sul, que fez um curso desenvolvido pela Sociedade Norte-Americana de Terapia Intensiva voltado para o atendimento de vítimas de desastres e catástrofes.
O toxicologista Anthony Wong diz que a maior parte dos casos de intoxicação por cianeto no Brasil decorre do consumo de mandioca brava
O único laboratório que fabricava a hidroxocobalamina no Brasil abandonou a produção há alguns anos por concluir que o investimento não compensava. Apesar da simplicidade da matéria-prima, trata-se de um kit que precisa ser mantido em temperatura adequada e tem de ser preparado na hora.
Alguns especialistas ouvidos pelo UOL ponderam que os casos de intoxicação por cianeto não são tão frequentes no Brasil. Na Europa, por exemplo, o veneno é muito utilizado em tentativas de suicídio, o que não acontece aqui. E nos EUA existe uma preocupação maior com armas químicas - o gás é uma delas. Mas, para Wong, o risco de exposição é o mesmo, não só pelo cultivo da mandioca, mas também pela frequência de acidentes em indústrias.
Banco de antídotos
Segundo o médico Carlos Augusto da Silva, do Centro de Informação Toxicológica (CIT) de Porto Alegre, a falta de interesse comercial na produção de hidroxocobalamina não justifica sua falta no país. "Na França, é o governo quem fabrica a substância", diz o especialista. De acordo com Franke, nos EUA a realidade é a mesma.
Silva aponta a necessidade de um banco de antídotos, até porque faltam no país várias outras substâncias usadas para tratar casos específicos de intoxicação. "Essa é uma reivindicação antiga nossa", enfatiza o médico, que já presidiu a Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox).
O toxicologista Sérgio Graff, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda com a necessidade do banco, mas lembra que o país é grande e algumas regiões seriam prejudicadas pela demora para transportar o antídoto. "Se a intoxicação ocorrer em uma fazenda ou em outro local de difícil acesso, por exemplo, levará horas para a substância chegar ao destino", comenta, sugerindo que a substância faça parte do arsenal dos socorristas.
Para os especialistas, o esperado é que a tragédia de Santa Maria faça o governo brasileiro buscar uma solução para essa deficiência. Questionado pelo UOL, o Ministério da Saúde informou que já discute a aprovação da hidroxocobalamina na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o protocolo de uso do medicamento no país.
Vítimas de Santa Maria
A demora na administração da hidroxocobalamina nas vítimas de Santa Maria foi alvo de críticas por parte de muitos especialistas ouvidos pela imprensa nos últimos dias - os kits chegaram no sábado (2), uma semana após o incêndio. O Ministério da Saúde explica que a decisão de submeter os pacientes ao exame que detecta a exposição ao cianeto coube a cada hospital, e dependeu da condição clínica e evolução das vítimas.
Sérgio Baldisserotto, diretor clínico do Hospital São Francisco de Assis e médico intensivista do Hospital Universitário, em Santa Maria, conta que o exame não é feito em Santa Maria e foi preciso acionar um laboratório de Porto Alegre, por isso a detecção ocorreu apenas 80 horas após o incidente. Ele diz que nem todos os pacientes internados apresentaram sintomas típicos de intoxicação por cianeto. Mas a maior parte tinha níveis elevados do veneno no sangue - não em quantidades letais, mas acima do normal.
Os técnicos do Ministério da Saúde e os médicos envolvidos no atendimento sabiam que não havia garantia de sucesso. Tanto que apenas 30 pacientes receberam a hidroxocobalamina. "Ainda não é possível avaliar se houve alguma melhora especificamente por causa do tratamento", informa Baldisserotto. "Mas é preciso deixar claro que nós sabíamos que o uso do antídoto era tardio. Mesmo assim optamos por usar, como qualquer pessoa de bom senso faria", frisa o médico, que diz não ter queixa alguma em relação ao suporte recebido pelo governo.
Os especialistas também reforçam que o cianeto não pode ser considerado o único vilão do caso de Santa Maria. "Todo incêndio gera um coquetel de gases tóxicos", esclarece o médico do Centro de Informação Toxicológica (CIT) de Porto Alegre. O monóxido de carbono produzido pela queima também pode levar à morte em poucos minutos, já que se liga facilmente à hemoglobina, estrutura do sangue responsável por levar o oxigênio para o corpo inteiro. Além disso, produtos queimados podem gerar amônia e acroleína, entre outros compostos de alta toxicidade.
Treino para catástrofes
Garantir os primeiros socorros, providenciar leitos e ventilação mecânica para todos os pacientes em uma cidade pequena é um desafio até para países desenvolvidos. Mas a verdade é que o Brasil não está preparado para agir em tragédias de grandes proporções. "Uma coisa é atender três ou quatro queimados; já atender 100 ao mesmo tempo requer um preparo específico", ressalta o médico intensivista Ricardo Lima, diretor da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).
A Amib espera implantar, aqui, o curso americano de catástrofe e desastres, até porque o preparo seria importante para um país prestes a sediar a Copa do Mundo. Para viabilizar a iniciativa em nível nacional, no entanto, a associação espera uma parceria com o Ministério da Saúde.
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