Tribunal livra militares que mataram músico e catador com 82 tiros no Rio
O STM (Superior Tribunal Militar) livrou de prisão os militares responsáveis pelas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de latas Luciano Macedo, executados pelo Exército na zona norte do Rio em abril de 2019.
O carro de Evaldo foi confundido com o de traficantes. Os militares dispararam 257 vezes, dos quais 82 tiros acertaram o veículo. O catador de latas foi atingido ao tentar prestar socorro. A família de Evaldo estava a caminho de um chá de bebê quando teve o carro atingido.
O tribunal entendeu que os militares não tiveram intenção de matar. Por maioria, o STM reduziu as penas impostas na primeira instância: a condenação passou de cerca de 30 anos para 3, e do regime fechado para o aberto. Na prática, a corte garantiu que nenhum dos militares seja preso por qualquer dos crimes cometidos.
Para os ministros, a morte do músico decorreu da troca de tiros com bandidos e a do catador foi acidental. Com isso, o tenente e o sargento tiveram as penas reduzidas; e as penas dos soldados e cabos envolvidos já prescreveu. Uma terceira acusação, de tentativa de assassinato de um familiar de Evaldo que estava no carro, foi alterada para lesão corporal culposa não intencional e também prescreveu.
Assistente da acusação, o advogado André Perecmanis, que representa as famílias das vítimas, disse por meio de nota que o STM "se recusa a punir adequadamente integrantes das Forças Armadas que pratiquem crimes gravíssimos contra civis". Ele informou que vai recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal) da decisão do STM.
"Ao nosso ver, a constatação de que a maioria absoluta dos ministros militares considera a execução sumária de dois inocentes com mais de oitenta tiros de armas de grosso calibre apenas um mero equívoco nos leva a refletir sobre a própria razão de ser da Justiça Militar em tempos de paz", diz a nota.
Condenação alterada na instância superior
Em outubro de 2021, o Tribunal de Justiça Militar condenou oito militares por homicídio qualificado a penas de 28 a 31 anos. Outros quatro militares foram absolvidos por não terem disparado suas armas no dia do crime.
Os condenados recorreram e o processo começou a ser analisado no STM em fevereiro de 2024.
O relator na corte, ministro Carlos Augusto Amaral, pediu a redução das penas para três anos. Ele votou para mudar a pena por homicídio qualificado para culposo (quando não há intenção de matar). Com isso, propôs reduzir o tempo de prisão em regime fechado e transformar para regime aberto. No entendimento de Amaral, os militares se viram em situação de perigo diante de bandidos e dispararam em legítima defesa.
O julgamento foi suspenso por pedido de vista (mais tempo para analisar o caso) feito pela ministra Maria Elizabeth Guimarães e retomado nesta quarta, quando a maioria seguiu Amaral.
Ministra aponta racismo e execução
Única mulher no STM, Guimarães manteve a condenação do sargento e do tenente que comandavam o grupo de militares na ocasião. Ela votou por reduzir as penas dos cabos e soldados para 23 anos.
Ninguém acompanhou a posição da ministra.
Ela entendeu que os militares incorreram na intenção de matar, uma vez que estavam fortemente armados e dispararam mais de duas centenas de tiros de armas de alto calibre contra o carro. A ministra destacou que não houve resistência por parte das vítimas, também atingidas pelas costas.
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Quero receberGuimarães afirmou que os militares tampouco deram aos suspeitos o direito ao devido processo legal. "O comportamento da tropa com a população deve se pautar pelo direito a garantias", afirmou.
Para ela, as questões racial e geográfica também pesaram na decisão de os militares dispararem contra o veículo: se fosse num bairro rico do Rio com população majoritariamente branca, eles não teriam atirado.
"Lamentavelmente o racismo estrutural é estruturante e permeia todas as relações sociais", afirmou. De acordo com a ministra, a discriminação é implícita e explícita, normalizado e banalizada, e resulta na difusão da ideia de que pessoas negras são perigosas.
Para Guimarães, a condenação de dois dos oito militares, com as patentes mais altas — um tenente e um sargento — deveria ser mantida na íntegra, enquanto a dos outro seis acusados — cabos e soldados — deveria ser reduzida para 23 anos, diferenciando assim a responsabilidade de quem comanda e de quem obedece.
Em abril, o presidente do STM, Francisco Joseli Parente Camelo, disse que a Corte não tem o objetivo de agradar a opinião pública e que o Exército não iria ficar desacreditado caso os militares fossem absolvidos.
O STM é composto por 15 ministros, sendo dez militares das Forças Armadas e cinco civis. Os militares são oficiais generais do último posto, sendo quatro do Exército, três da Marinha e três da Força Aérea. Dentre os civis, três são da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), um é oriundo da magistratura e o outro é quadro do Ministério Público.
Defesa alegou estresse
No dia 7 de abril de 2019, Evaldo estava com a família a caminho de um chá de bebê quando passou por patrulha na região da Vila Militar em Guadalupe, na zona norte do Rio, onde foi alvo dos disparos. Segundo a Procuradoria de Justiça Militar no Rio de Janeiro, não houve ordem para o carro parar e não havia posto de bloqueio ou blitz na via.
O catador Luciano Macedo, que passava a pé, também foi atingido e morreu dias depois. Segundo Dayana Fernandes, viúva de Macedo, o marido tentou ajudar Evaldo após o carro ser alvejado.
Em fevereiro, quando começou o julgamento do recurso dos militares no STM advogado Rodrigo Roca, que defende os militares, afirmou que a ação foi um "erro plenamente justificado pelas circunstâncias". Segundo o defensor, os militares agiram em legítima defesa por entenderem que estavam em confronto em uma área de conflito; eles teriam sido informados sobre um assalto na região e entrado em confronto com bandidos, que fugiram. Na perseguição, teriam confundindo o carro do músico, que estaria baleado, com o dos criminosos.
O procurador Antônio Pereira Duarte, que representa as vítimas, disse que "não havia assalto em andamento" para os militares agirem daquela maneira. Ele destacou que, ao recorrer da condenação, os militares reiteram a tese de que supunham estar sob ameaça e que, após quase duas horas de confronto com traficantes naquela manhã, se encontravam abalados e temerosos por suas vidas.
André Perecmanis, o advogado das famílias das vítimas, disse na época que a defesa dos militares alegar que eles estavam sob estresse não é razoável. "Se as Forças Armadas trocarem tiros na parte da manhã, ninguém sai às ruas porque tudo pode acontecer. Se tiver um assalto e alguém estiver com um carro igual ou parecido com o dos assaltantes, vai ser uma fatalidade se for metralhado com 82 tiros de fuzil."
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