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Dia da Mulher também é comemorado por transexuais; conheça processo que vai além da cirurgia

Roberta Nunes de Marchi chegou a prestar serviço militar, mas conta que sempre deixou bem claro que era uma mulher, e hoje comemora até por ser protegida pela Lei Maria da Penha: "Sou uma mulher"" - Arquivo pessoal
Roberta Nunes de Marchi chegou a prestar serviço militar, mas conta que sempre deixou bem claro que era uma mulher, e hoje comemora até por ser protegida pela Lei Maria da Penha: 'Sou uma mulher'' Imagem: Arquivo pessoal

Daniel Santos

Do BOL, em São Paulo

08/03/2013 11h32

Roberta Nunes de Marchi, 51, lembra quando foi a primeira vez que lhe ocorreu a primeira sensação feminina. Nascida em Periperi, subdistrito de Salvador, na Bahia, a produtora de eventos retoma a infância como menino e recorda de uma doença que atingia as crianças de sua cidade: a esquistossomose, também conhecida como barriga d’água. Aos 5 anos, com medo de ser mais uma vítima da enfermidade, Roberta – que até então se chamava Roberto – fez um pedido “inusitado” para a avó: se por acaso viesse a morrer, queria ser enterrado com vestido de noiva.

População transexual

O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais, em São Paulo, tem 1.500 usuários cadastrados. Do total, segundo a diretora técnica Angela Peres, 65% se denominam transexuais - sendo 55% homens e 10% mulheres -, e 30% são travestis. Peres também informa que o centro de atendimento já encaminhou 2 pacientes mulheres e 4 homens para realização da cirurgia no Hospital das Clínicas. Atualmente, 12 pacientes aguardam a chamada do H.C. para realizar o procedimento de transgenitalização.

Desde 2010, quando foi fundado o Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), o Instituto de Psiquiatria do HC acompanhou 120 pacientes, sendo 15 mulheres e 105 homens, com idade entre 17 e 74 anos, e sete foram encaminhados para intervenção cirúrgica. De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, estimativas mundiais apontam que a cada 30 mil homens, um é transexual. No caso de mulheres, as estatísticas indicam que uma a cada 100 mil mulheres tem transtorno de identidade de gênero.

Geralmente, o “diagnóstico” popular julgaria o pedido do garoto como possível inclinação à homossexualidade. Quando, na verdade, Roberta dava os primeiros indícios de transtorno de identidade de gênero, como é denominada a transexualidade - quando a pessoa se identifica com o sexo oposto e, por isso, vive uma discordância psíquica entre a anatomia sexual e a mental.

De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, a transexualidade se manifesta ainda na infância, “mas raramente fica claro desde o início se tratar de transexualismo, e nem toda criança com transtorno vai se submeter a uma cirurgia quando adulta”, ressalta Saadeh.

“Na maioria dos casos, a criança apresenta irritação, fica deprimida e até agressiva, caso seja obrigada a se comportar segundo o sexo anatômico. Hoje em dia, os pais se preocupam mais e procuram avaliação com profissionais”, diz Saadeh.

Se nos dias atuais há mais informação para os pais entenderem a possível transexualidade dos filhos e ainda assim é um processo difícil, nos tempos de Roberta Nunes de Marchi era ainda mais complicado.

“Sofri muito preconceito, principalmente por parte do meu padrasto, que era uma pessoa retrógrada, conservadora. E eu nunca quis camuflar o que eu era realmente, porém a transformação só veio mesmo aos 19 anos, quando comecei a tomar hormônio”, conta Roberta, que chegou a exercer o serviço militar. “No quartel, sempre fui respeitada. Até porque deixei bem claro qual era a minha condição, que eu era uma mulher”.

Portanto, o Dia Internacional da Mulher, comemorado neste 8 de Março, também é de Roberta e de outras mulheres como ela. "Realizei tudo que eu quis como mulher. Inclusive tenho a proteção da Lei Maria da Penha. Isso não é maravilhoso?", comemora. "Mas ainda falta o tão sonhado casamento com direito a véu e grinalda", diz Roberta, rindo. Ela se submeteu à cirurgia de readequação sexual há 16 anos, quando tinha 35 anos de idade.

Readequação sexual

Depois do acompanhamento psiquiátrico e do tratamento com endocrinologistas – que pode levar até dois anos de avaliação -, a paciente vai, enfim, realizar a cirurgia para “mudança de sexo”. O cirurgião plástico Jalma Jurado, que é considerado o “pai da transgenitalização brasileira” (foi ele quem realizou a primeira cirurgia legalizada no Brasil, em 1998), já fez mais de 200 cirurgias de readequação sexual, mas não concorda com o termo “mudança de sexo”.

Formação da identidade

  • "A cirurgia foi o encontro da minha alma com o meu corpo" - ex-BBB Ariadna


  • Segundo o cirurgião plástico Jalma Jurado, pesquisadores holandeses afirmam que a identificação do gênero acontece na fase intra-útero. O médico explica que o hipotálamo (região cerebral) abriga um núcleo de células - chamadas Stria Terminalis -, que forma a sexualidade. No caso dos transexuais MtF (male to female - de homem para mulher), a anatomia dessas células é idêntica à da mulher, o que leva a pessoa a influências e comportamento feminino, ou vice-versa. "O transexual tem muita segurança quanto à sua identidade, por isso que sente a necessidade de se submeter à cirurgia", explica Dr. Jurado.

“Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo ao cérebro”, explica o cirurgião. Jurado é conhecido por desenvolver uma técnica chamada “retalho neuro-arterial”, que, segundo esclarece, “preserva o prazer sexual da paciente”.

“Na cirurgia, preservamos parte do canal urinário para fazer o clitóris. A glande é fixada no interior da nova vagina, imitando o útero e resguardanfo toda a sensibilidade”, explica Jurado.

O procedimento pode parecer assustador para o grande público. E, de fato, como toda cirurgia, é bastante delicado, porém representa o fim de uma angústia para quem nasceu com o transtorno.

“A cirurgia foi o encontro da minha alma com o meu corpo. Fiquei tão feliz, que o pós-operatório não me trouxe grandes dificuldades”, conta a ex-BBB Ariadna Arantes, que foi operada pelo Dr. Kamol Pansritum, renomado cirurgião da Tailândia. "Agora, para me sentir mais completa, quero ter um filho, e já penso em adoção", revelou.

Já Roberta Marchi conta que sua maior dificuldade foi com o lado emocional, pois sofreu com depressão. "A transição não é tão simples. Depois do 'sonho realizado', podem surgir outras ansiedades, como, por exemplo, a busca pelo prazer sexual, que no meu caso aconteceu 8 meses após a redesignação", conta.

E por falar em prazer, o psiquiatra Alexandre Saadeh chama atenção para um fato curioso: mulheres submetidas à transgenitalização (cirurgia de readequação sexual) costumam sentir mais prazer sexual do que mulheres biológicas e, também, tendem a deixar seus parceiros mais satisfeitos.

"Isso porque a cirurgia mantém o tecido peniano e a próstata, que é massageada durante o ato sexual. Já para os parceiros o prazer é maior porque uma técnica da cirurgia aproveita a base do corpo cavernoso, que com a excitação absorve sangue dos tecidos, comprimindo a entrada da vagina", esclarece Saadeh. O psiquiatra ressalta que, depois da readequação, é mais saudável aguardar até seis meses para iniciar a vida sexual como mulher.

A primeira cirurgia de readequação sexual foi realizada em 1931, em Viena (Áustria). No Brasil, a primeira intervenção data de 1971, em São Paulo, pelo Dr. Roberto Farina. Mas a regulamentação brasileira só aconteceu em 1997, e as cirurgias eram realizadas em hospitais universitários. Somente em 2008 o processo de redesignação sexual foi oficializado pelo governo brasileiro para realização no Sistema Único de Saúde (SUS).

Direito à identidade

Depois da cirurgia, as transexuais enfrentam os trâmites judiciais, para serem reconhecidas como mulheres sociais.

Em novembro de 2012, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH) aprovou projeto que permite a transexuais mudança de nome e de sexo no registro civil. O texto, de autoria da senadora licenciada e ministra da Cultura Marta Suplicy (PT-SP) diz que “é justo garantir às pessoas que não se identificam com o sexo e com o nome que lhes foram atribuídos ao nascer, que se sentem como se tivessem nascido no corpo errado, o direito de alterar o nome em seus documentos de identificação”.

Caso Roberta Close

  • A luta de Roberta Close com a justiça durou 15 anos. A modelo, que fez a cirurgia em 1989, foi autorizada a tirar os documentos com o novo nome em 1992. Na época, a documentação de Roberta especificava "feminino (operado)". Em 1997, o Supremo Tribunal Federal negou a mudança do sexo civil. O duelo judicial teve fim em março de 2005, com o processo defendido pela advogada Tereza Vieira, que mudou a solicitação: Roberta Close teria que ser reconhecida como mulher em seus documentos. Então a modelo finalmente venceu o entrave e passou a portar documentação com o nome de Roberta Gambine Moreira.

Mesmo assim, segundo a advogada Tereza Rodrigues Vieira, PhD em Direito pela Universidade de Montreal (Canadá) e coautora do “Estatuto da Diversidade Sexual”, mulheres transexuais ainda se deparam com obstáculos quando entram com ação para alterar nome e sexo civil.

“O maior entrave é o preconceito, pois há juízes que ainda exigem que a pessoa tenha passado por todas as cirurgias, mesmo as experimentais. Em todas as nossas ações, procuro apresentar laudos e pareceres de especialistas experientes comprovando a irreversibilidade da identidade de gênero e impossibilidade de vida digna sem a adequação dos documentos”, diz Vieira, que já venceu 98 ações judiciais com clientes transexuais.

Foi o que aconteceu com a produtora de eventos Roberta Nunes de Marchi, que lutou durante três anos e meio para conseguir adequar a documentação. Já no caso de Ariadna Arantes, inicialmente a solicitação foi rejeitada pelo juiz, que não aceitou o laudo psicológico feito na Itália.

Segundo a advogada Iara Matos Guimarães, para iniciar o processo “é necessário apresentar todos os laudos exigidos para a cirurgia, bem como todos os documentos pessoais, declarações, certidões que provem que a mudança não vai prejudicar terceiros”.

“Na posse desses laudos e documentos é elaborada uma petição inicial, na qual temos que descrever como a transesual vive, citando o preconceito pelo que passa ao ser identificada pelo nome do registro civil. Todos os números dos documentos permanecem os mesmos, só são alterados o prenome e o sexo. Outra informação importante é que elas podem casar normalmente com o seu parceiro, pois a certidão de nascimento não faz qualquer menção à transexualidade”, explicou.

Tereza Vieira acredita que não é a cirurgia e o registro que fazem as transexuais se sentirem mulheres, "afinal, a sexualidade delas já está formada no psíquico", porém a documentação adequada tem uma importância fundamental para essas mulheres: “Elas não precisarão se candidatar a subempregos nem terão mais vergonha de mostrar a identidade. O nome corresponderá ao seu biotipo”.