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Transplantes de face devem ser oferecidos a mais pacientes, conclui estudo

Richard Lee Norris antes (à esquerda), desfigurado por um acidente com arma, e 16 meses depois de um transplante de face em 2012; a primeira revisão sobre o tema mostra que o procedimento em geral é seguro  - New York Times
Richard Lee Norris antes (à esquerda), desfigurado por um acidente com arma, e 16 meses depois de um transplante de face em 2012; a primeira revisão sobre o tema mostra que o procedimento em geral é seguro Imagem: New York Times

Lawrence K. Altman*

The New York Times

30/04/2014 07h00

Quando o primeiro transplante de face do mundo foi realizado na França em 2005, ele promoveu um avanço das fronteiras da medicina e ganhou as manchetes. Mas o futuro do procedimento ainda estava envolto em dúvida.

Os cirurgiões, operando uma francesa de 38 anos cujo rosto foi mutilado por seu cão labrador de estimação, tiveram que superar a oposição de sociedades médicas de prestígio, que declararam que o procedimento era antiético e imoral. Os críticos, incluindo cirurgiões que perderam na competição para realização do primeiro transplante de face, disseram que a equipe pioneira não seguiu as diretrizes éticas e legais.

Mas a primeira revisão abrangente de todos os transplantes de face relatados desde então –28 em sete países, contando o caso francês, mas não dois realizados na Turquia desde que a revisão foi concluída– removeu muitas das dúvidas iniciais.

O resultado, publicado online pela "The Lancet" no domingo, diz que o procedimento costuma ser seguro e é viável, e deveria ser oferecido a mais pacientes.

O endosso é cauteloso: os pesquisadores notam que a operação ainda é experimental, arriscada e cara (pelo menos US$ 300 mil), e que os pacientes devem ser selecionados cuidadosamente. Após o transplante, os pacientes enfrentam risco contínuo de infecção e reações aos medicamentos antirrejeição tóxicos.

Mas o artigo acrescenta que para muitas pessoas –vítimas de desordens genéticas, disparos de arma de fogo, mordidas de animais, queimaduras e outros acidentes– os transplantes podem reduzir ou eliminar as deformidades grotescas que as deixam vítimas de gozações, discriminação, isolamento e depressão séria.

As técnicas de reconstrução convencionais com frequência são inadequadas, e podem produzir cicatrizes e deformidades terríveis nas áreas do corpo do paciente de onde tecido é removido e transferido para a área facial.

Em comparação, os transplantes de face transformaram as vidas de quase todos os pacientes sobreviventes. Eles recuperaram a capacidade de comer, beber, falar de modo mais inteligível, cheirar, sorrir e piscar; muitos saíram do ostracismo e da depressão. Quatro pacientes voltaram a trabalhar ou estudar. (Três pacientes morreram.)

Face de outro

A ideia de um indivíduo usar a face de outro inicialmente assustou alguns críticos. Mas diferente desses temores, nenhum paciente lembra fisicamente o estranho que a doou.

O novo rosto é "uma mistura única do paciente e do doador, e você não reconheceria o doador andando pela rua", disse o principal autor da revisão, Eduardo D. Rodriguez, do Centro Médico Langone da Universidade de Nova York, em uma entrevista. Ele tem diplomas de medicina e odontologia, e liderou a equipe que realizou um transplante facial pleno em 2012, quando estava na Universidade de Maryland.

Rodriguez disse que ele e seus coautores passaram quase um ano revisando as revistas médicas, relatos na imprensa e entrevistando os outros cirurgiões que realizaram os 28 transplantes. Desses, 11 foram enxertos faciais plenos. Como não há um protocolo padrão para transplantes de face, os autores se concentraram na análise de certos fatores imunológicos, psicológicos e outros fatores funcionais e comportamentais nos 18 pacientes para os quais havia informação disponível.

Algumas revelações foram surpreendentes. As novas faces inicialmente pareciam dormentes, como se o paciente tivesse voltado de um consultório odontológico. Mas a dormência dura meses.

Os céticos duvidavam que os pacientes recuperariam as sensações faciais normais –sentir um beijo ou uma brisa fresca, sentir o cheiro de grama recém aparada. Mas alguns conseguiram, três meses depois do transplante.

Alguns críticos disseram que o reparo dos nervos demoraria demais para obtenção de ganhos funcionais, por exemplo, ao comer e engolir. Apesar da restauração da função motora ser mais lenta, alguns pacientes conseguiam juntar seus novos lábios em seis meses e fechar suas bocas depois de oito meses. Em três meses, alguns conseguiam engolir e produzir fala inteligível. Sorrir demorou mais, após cerca de dois anos, e continua melhorando após oito anos.

Sem causar surpresa, o principal motivo para o sucesso foi um esforço rigoroso pré-transplante para identificar candidatos que estariam motivados a manter um regime antirrejeição e que contavam com um forte sistema de apoio social. Decidir quem é e quem não é candidato para um transplante de face pode ser mais difícil que a cirurgia, que pode durar mais de um dia. Os cirurgiões podem passar anos treinando para o procedimento e então passar meses à procura e um doador com uma compleição, estrutura óssea e outras características importantes compatíveis.

Como é o transplante

Uma equipe remove a face e os tecidos por trás de um doador, enquanto uma segunda remove as porções danificadas do rosto do paciente. Osso, se necessário, é enxertado primeiro. Então quatro artérias e veias importantes, duas delas de cada lado da parte superior do pescoço, são ligadas o mais rapidamente possível. Assim que o sangue flui para nutrir a nova face, os cirurgiões podem demorar mais para costurar nervos, músculos e outros tecidos moles, e finalmente a pele. Enquanto o enxerto cicatriza e os nervos se regeneram, a reabilitação para reaprender a falar e outras tarefas tem início; o monitoramento para rejeição dura a vida toda.

No primeiro ano pós-transplante, todos os pacientes apresentaram episódios agudos de rejeição de severidade variada, mas foram revertidos com drogas imunossupressoras. Nenhuma rejeição crônica foi relatada, talvez porque a visibilidade da pele facial permite aos médicos perceber e tratar uma rejeição mais cedo do que ocorre com outros órgãos e tecidos.

Os sucessos, limitados como alguns foram, ajudaram a superar as objeções iniciais como as da Royal College of Surgeons do Reino Unido e de um comitê nacional de ética na França. Estes e outros críticos disseram que a operação não visava salvar a vida e que o risco de medicamentos imunossupressores obrigatórios por toda a vida e a ameaça constante de infecção superavam em muito os benefícios para pessoas fora isso saudáveis.

Mas os defensores tinham um poderoso argumento a seu lado: os sucessos iniciais de transplantes de mão e braço, a partir de 1998.

Como ambos os tipos de transplante envolvem uma mistura de ossos, vasos sanguíneos, músculos, nervos e outros tecidos moles, os céticos diziam que a terapia imunossupressora padrão poderia não impedir a rejeição. Mas, na verdade, um regime de três medicamentos usados para transplantes de coração, fígado e rim –micofenolato, esteroides e tacrolimo– revelou funcionar em enxertos compostos. Alguns pacientes puderam reduzir as doses de esteroides após um ano, e alguns poucos puderam deixar de usá-los.

Os cirurgiões franceses têm sido os líderes, tendo realizado 10 transplantes de face. Em Paris, Laurent Lantieri, que criticou o primeiro, realizou sete. Sete transplantes foram realizados nos Estados Unidos, sete na Turquia, três na Espanha, e um na Bélgica, um na China e um na Polônia.

O domínio europeu parece refletir o fato dos planos nacionais de saúde pagarem pelo procedimento, enquanto fundos privados e verbas públicas são necessárias nos Estados Unidos, disse Rodriguez, cujo artigo na "Lancet" antecede os preparativos de sua equipe para o primeiro transplante de face em Nova York, mais à frente neste ano. Um pequeno número de outros hospitais americanos disse que planeja começar a oferecer o procedimento.

Rodriguez disse que realizou a revisão para ajudar a melhorar os resultados em futuros casos, e para determinar quantos transplantes de face precisam ser realizados para convencer as seguradoras a pagar por eles, assim como fazem em transplantes de rim, fígado, coração e outros órgãos.

Questões éticas

Os primeiros sucessos levaram a novas questões éticas. Quanto tempo um indivíduo gravemente desfigurado deve esperar após receber outra terapia antes de receber um transplante de face? Qual deveria ser a idade mais jovem para poder receber um transplante? (Os pacientes variaram de 19 a 60 anos.)

As agências de governo contribuíram para pressionar pela expansão. "Com algumas vítimas entre bombeiros, policiais e militares, pode ser argumentado que temos um imperativo moral de restaurá-los em segurança", disse Rodriguez.

Mas os custos da cirurgia e da terapia antirrejeição exigem apoio financeiro vitalício. Muitos pacientes precisam de cirurgias corretivas pós-transplante para problemas como realinhamento de osso e dentário, o que aumenta o risco de infecção e má cicatrização.

Os líderes querem evitar a experiência na China, onde quase todos os pacientes iniciais de transplantes de mão rejeitaram os enxertos de seus doadores, porque as autoridades públicas deixaram de pagar pelos medicamentos antirrejeição e os pacientes não podiam arcar com o preço deles.

Diferentes centros de transplante usam técnicas diferentes, e a revisão da "Lancet" pede por um registro central para o qual os cirurgiões possam relatar dados padrão em intervalos específicos, para ajudar a determinar sucessos e fracassos a longo prazo. Atualmente há pouca informação posterior além de um ano após a cirurgia, em parte porque muitos dos transplantes foram feitos depois de janeiro de 2012. Um registro também poderia ajudar a mostrar se diferenças nas técnicas resultam em diferenças nos resultados.

Dos três pacientes que morreram, um não gostava dos efeitos colaterais dos medicamentos imunossupressores e recorreu a outros remédios, o que levou a múltiplos episódios de rejeição e então à morte. Um segundo, que realizou transplantes simultâneos de ambas as mãos, desenvolveu uma infecção em um enxerto e morreu dois meses depois da cirurgia combinada. A terceira morte resultou de um reaparecimento de câncer em um paciente portador de HIV, que passou por cirurgia para câncer antes do transplante de face.

As mortes ressaltam a necessidade de melhores medidas de avaliação para eliminação de candidatos com outras condições médicas e aqueles que potencialmente não seguirão a receita prescrita, disse Rodriguez.

*Lawrence K. Altman é médico