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Microcefalia é a consequência mais óbvia; zika pode levar a doenças mentais

"Uma geração inteira de crianças pode ser afetada", diz especialista suíço - iStock
"Uma geração inteira de crianças pode ser afetada", diz especialista suíço Imagem: iStock

Donald G. Mcneil Jr.

01/03/2016 10h00

Um bebê com a cabeça pequena e mal formada certamente é uma imagem triste de ver. Mas especialistas em saúde reprodutiva alertam que a microcefalia pode ser apenas a consequência mais óbvia da transmissão do vírus da zika.

Muitos pesquisadores temem que até mesmo crianças que nascem aparentemente normais correm um risco maior de sofrer com doenças mentais ao longo da vida, caso as mães tenham sido infectadas com o vírus durante a gravidez.

O vírus zika, de acordo com eles, lembra muito alguns agentes infecciosos que estão ligados ao desenvolvimento do autismo, do transtorno bipolar e da esquizofrenia.

A esquizofrenia e outras doenças mentais debilitantes não têm causa única, enfatizam os especialistas entrevistados. Esses problemas surgem em decorrência de uma série de fatores, incluindo predisposições genéticas e traumas ao longo da vida, tais como abusos físicos ou sexuais, abandono ou uso de drogas pesadas.

Contudo, doenças no útero, incluindo infecções virais, podem ser um dos gatilhos.

A consequência do zika vai muito além da microcefalia

W. Ian Lipkin, que dirige o Centro de Doenças Infecciosas e Imunidade da Universidade de Columbia.

Entre os bebês nascidos na América Latina e no Caribe, “não me surpreenderia se víssemos um aumento significativo no TDAH, no autismo, na epilepsia e na esquizofrenia. Estamos falando de um grande grupo de indivíduos que não serão capazes de funcionar neste mundo”.

Pesquisadores brasileiros estão acompanhando milhares de nascimentos de crânios com microcefalia. Embora ainda não existam provas inequívocas de que o vírus da zika seja o causador, os virologistas que estudam o surto têm boas razões para crer que sim.

Embora o vírus tenha sido descoberto em 1947, nenhuma pesquisa foi realizada para averiguar suas consequências de longo prazo. Os cientistas são obrigados a inferir com base no que sabem a respeito de infecções similares.

Em entrevistas, pesquisadores psiquiátricos especializados no desenvolvimento fetal concordam com o prognóstico pessimista de Lipkin.

Um ataque viral no início da gravidez pode matar o feto, ou impedir o crescimento do cérebro, resultando na microcefalia, afirmou.

Uma infecção em um momento posterior do desenvolvimento fetal, quando o cérebro já está formado, pode causar danos menos óbvios, mas ainda assim significativos.

“É muito assustador. Esses problemas ocorrem em escala contínua, o processo para que uma pessoa acabe com autismo ou esquizofrenia é complexo, e é impossível prever essas coisas”, afirmou Urs Meyer, neurobiólogo comportamental no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça em Zurique, que estuda as consequências das infecções fetais em animais de laboratório.

Ao longo dos anos, têm crescido as evidências de que as doenças mentais estejam ligadas à exposição a vírus como rubéola, herpes e gripe durante a gravidez, além de parasitas como o Toxoplasma gondii.

“Isso pode ocorrer com uma série de vírus e outros agentes infecciosos, mas não sabemos com que frequência”, afirmou E. Fuller Torrey, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Médica Stanley em Chevy Chase, Maryland.

Entenda a microcefalia

UOL Notícias

Torrey destacou que Rosemary Kennedy, irmã do presidente John F. Kennedy, nasceu em 1918 durante a epidemia de gripe espanhola. Ela teve problemas mentais durante a infância e desenvolveu sintomas de esquizofrenia aos 20 anos de idade. Embora alguns historiadores tenham atribuído seus problemas à falta de oxigênio durante o parto, Torrey acredita que a infecção viral no útero seja “a explicação mais provável”.

A possibilidade de que infecções no útero possam contribuir para causar doenças mentais foi aventada pela primeira por pesquisadores finlandeses que observaram em 1988 que crianças nascidas durante o surto de gripe asiática de 1957 possuíam índices mais altos de esquizofrenia durante a vida.

Há muito tempo os pesquisadores perceberam que a esquizofrenia é mais comum em adultos que nasceram no inverno e no início da primavera – pouco após o pico da gripe.

Contudo, as estimativas do tamanho do risco variam. Uma análise feita em 2011 a partir de outros estudos estimou que as infecções maternas são responsáveis por 6% de todos os casos de esquizofrenia. (Os pesquisadores realizaram estudos de grandes proporções na Finlândia, na Suécia e na Dinamarca, já que esses países contam com registros médicos detalhados do nascimento até a morte de seus cidadãos).

Por outro lado, um estudo realizado em 2001 com filhos adultos de mães infectadas com rubéola durante a última epidemia norte-americana, que durou de 1964 a 1965, revelou que 20% apresentavam sintomas de esquizofrenia. O índice comum entre os adultos é de menos de 1%.

Alan S. Brown, diretor de estudos de gerações de nascimento da Faculdade de Medicina da Universidade de Columbia, além de orientador do estudo, afirmou que era "certamente possível", que o vírus da zika representasse um risco similar, “embora precisemos de um estudo controlado para afirmar com certeza”.

Ainda que as crianças possam vir a ter problemas, as alucinações, vozes e a paranoia da esquizofrenia geralmente não surgem até o fim da adolescência, “quando o cérebro passa por uma enorme transformação”, afirmou Robert H. Yolken, neurovirologista do desenvolvimento na Universidade Johns Hopkins, que também acredita que o vírus da zika pode aumentar o risco de doenças mentais.

Os efeitos da zika são similares ao da rubéola, de acordo com alguns especialistas: ambos causam manchas leves na pele dos adultos, mas podem causar microcefalia, má formação nos olhos e até a morte dos fetos.

Durante a epidemia de rubéola de 1964-65, cerca de 20 mil recém-nascidos sofreram as consequências: um total de 11 mil nasceram surdos, 3.500 nasceram cegos, e ao menos 1.800 outros vieram a ter problemas mentais.

Essa epidemia infectou cerca de 12 milhões de americanos. Mais de 500 milhões de pessoas vivem em países da América Latina e do Caribe, por onde a Organização Mundial da Saúde prevê que o vírus da zika irá se espalhar.

Stanley A. Plotkin, especialista em rubéola, afirmou ser possível que as crianças que sobrevivam à zika durante a gravidez sem sinais de microcefalia ainda poderiam apresentar déficits mentais ao longo da infância.

“Qualquer vírus no sangue de uma mulher grávida representa um risco para o feto, o que significa que pode haver dano”, afirmou. Seu trabalho como pediatra mostrou que muitas crianças que sobreviveram à epidemia de 1964-65 “sofreram com autismo, dificuldades de aprendizagem e problemas comportamentais”.

O vírus da zika parece atacar células nervosas com mais intensidade que a rubéola, que também causa defeitos no coração, por exemplo.

Patologistas em Ljubljana, Eslovênia, que dissecaram um feto microcefálico abortado durante a 32a semana de gravidez por uma europeia que se infectou durante a gravidez no Brasil relataram recentemente que encontraram “danos cerebrais severos associados à associação por ZIKV com transmissão vertical” – ou seja, pelo vírus zika transmitido da mãe para o feto.

Contudo, o patógeno nem precisa chegar ao feto para causar dano.

Os vírus da gripe não atravessam a placenta, afirmou Meyer, do Instituto Suíço, mas a reação do sistema imunológico da mãe cria uma tempestade de citosinas, que podem ser prejudiciais. As citosinas são pequenas proteínas de “sinalização” que podem impedir o crescimento celular.

O tamanho do dano depende não apenas do vírus e da reação imunológica da mãe, mas também do estágio da gravidez em que a infecção ocorre.

As infecções ocorridas no primeiro trimestre podem levar à calcificação e à morte do tecido cerebral; em estágios posteriores os efeitos podem ser mais sutis, mas ainda assim insidiosos.

Por exemplo, Lipkin, do centro de imunologia da Universidade de Columbia, afirmou que em 2010 seu laboratório infectou ratas prenhes com um RNA viral sintético que era replicado pelo cérebro dos fetos. Os resultados foram altamente imprevisíveis.

“Se você infectasse os animais no meio da gravidez, as crias se tornavam apáticas; ficavam sentadas no canto da jaula e não interagiam de nenhuma maneira. Se fossem infectadas após dois terços da gravidez, tornavam-se hiperativas.”

Relatórios sugerem que o Brasil, que já enfrentava uma crise econômica antes do surto da zika, não tem condições de lidar com uma epidemia de crianças com deficiência mental.

No início, os pesquisadores europeus prestaram pouca atenção no surto sul-americano, afirmou Meyer. Mas isso mudou.

A informação que estamos recebendo agora é impressionante. Uma geração inteira de crianças pode ser afetada