Topo

'Atende a interesses supercapitalistas', diz Cunha sobre legalizar aborto

Homem com a máscara do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pisa na ativista do movimento feminista Bastardxs em protesto em defesa do aborto - Leonardo Banassatto - 8.mar.2015/Futura Press/Estadão Conteúdo
Homem com a máscara do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pisa na ativista do movimento feminista Bastardxs em protesto em defesa do aborto Imagem: Leonardo Banassatto - 8.mar.2015/Futura Press/Estadão Conteúdo

Mariana Schreiber

Da BBC Brasil em Brasília

26/10/2015 12h55

A aprovação em primeira etapa de um projeto de lei que muda as regras para abortos, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), gerou grande controvérsia na semana passada.

O deputado quer criar punições mais severas para quem fornecer substâncias abortivas e tornar obrigatória a comprovação prévia de abuso sexual por meio de exames antes da realização de abortos em casos de gravidez resultantes de estupro - procedimento que é permitido no país.

Tão polêmica quanto o conteúdo do projeto de lei 5.069 - que foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e ainda será votado em plenário - é a justificativa de Cunha para aprová-lo.

No texto apresentado junto com a proposta em 2013, o peemedebista afirma que "a legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais (.) financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses supercapitalistas", com objetivo de promover "controle populacional".

Segundo ele, é preciso adotar uma nova lei para "enfrentar semelhante ofensiva internacional, contrária aos desejos da maioria esmagadora do povo brasileiro, que repudia a prática do aborto".

A teoria é criticada por José Eustáquio Alvez, demógrafo que é referência nos estudos sobre controle de natalidade e direitos reprodutivos no Brasil. Ele nota que a taxa de fecundidade (quantidade média de filhos por mulher) já caiu drasticamente no Brasil desde os anos 60 mesmo com o aborto sendo ilegal. "Essa argumentação (de Cunha) é totalmente maluca, não tem o menor fundamento", diz.

Já o deputado federal Evandro Gussi (PV-SP), relator da proposta na CCJ, afirmou que as razões que ele incluiu no substitutivo do projeto - versão que acabou aprovada pelo colegiado - são diferentes daquelas apresentadas por Cunha. Ele evitou dizer se concorda ou não com a opinião do presidente da Câmara, mas avalia, porém, que isso não é relevante.

"Pouco me importa se há estratégia ou se não há estratégia (de fundações americanas). O que importa é o fato de (o aborto) ser um crime horroroso e de essas condutas acessórias precisarem ser punidas", afirma o deputado. "Queremos ajudar na punição do estuprador", acrescenta.

Em sua página pessoal no Facebook, Cunha disse na quarta-feira que "o projeto vai no sentido de proteger a vida, impedindo que fraudes sejam cometidas por mulheres que, no intuito de abortar, apresentam-se como vítimas de estupro".

Retrospecto

Em cinco páginas, Cunha argumenta que, desde os anos 1950, grupos americanos como as fundações Rockefeller e Ford fazem lobby junto ao governo dos EUA para incentivar políticas de controle da natalidade mundo afora, entre elas a facilitação da prática de abortos.

Atualmente, diz o deputado, essa política capitaneada por nações desenvolvidas ganhou uma roupagem de "redução de danos" ao incentivar o aborto seguro como forma de diminuir as mortes de mulheres.

De acordo com o texto assinado por Cunha, os governos de Reino Unido, Dinamarca, Suécia, Noruega e Suíça teriam constituído na última década um fundo internacional, o Safe Abortion Action Fund, para financiar projetos de aborto seguro nos países subdesenvolvidos.

O deputado afirma ainda que esses grupos teriam usado o discurso da "emancipação da mulher" para manipulá-las de acordo com seus interesses de redução da natalidade.

"Neste sentido, as grandes fundações enganaram também as feministas, que se prestaram a esse jogo sujo pensando que aquelas entidades estavam realmente preocupadas com a condição da mulher", escreveu Cunha.

Para a professora da Universidade de Brasília (UnB) Débora Diniz, especialista na questão do aborto, "Cunha usa como argumento um certo nacionalismo tolo, como se as mulheres fossem fantoches de uma ordem internacional de manipulação dos seus corpos, para tentar confundir as pessoas".

Ela critica o projeto e destaca que uma em cada cinco mulheres de até 40 anos de idade já fez aborto ilegal. "Isso é dramático", diz.

Segundo a professora, não há estatísticas confiáveis sobre quantas mulheres morrem por ano devido a abortos inseguros.

Em fevereiro deste ano, logo que assumiu a presidência da Câmara, Cunha disse que "(a legalização do) aborto só vai à votação se passar pelo meu cadáver".

Planeta finito

Um teólogo e filósofo belga, o padre Michel Schooyans, é considerado um dos principais teóricos por trás da argumentação usada por Cunha.

Em entrevista à Agência Católica de Informações, Schooyans argumenta que o controle da natalidade promovido por nações ricas em países em desenvolvimento "é uma ideologia discriminatória, eugenista, segregacionista". Por trás dessa política, ele vê um desejo de "controlar o crescimento da população dos países do sul porque temos medo desta população".

José Eustáquio Alvez, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, diz que realmente os países desenvolvidos incentivaram políticas de redução da fecundidade em nações pobres.

No entanto, ele considera "maluca" a teoria de Cunha sobre "interesses supercapitalistas" estarem por trás de campanhas a favor do aborto e do controle populacional. Para Eustáquio, a queda da natalidade está diretamente ligada ao desenvolvimento.

"O crescimento demográfico infinito é impossível num planeta que é finito, acabaria com a natureza, com tudo. Então, a redução do crescimento populacional é bem-vinda e isso se reflete no fato de que nenhum país desenvolvido tem fecundidade alta".

Segundo Eustáquio, outros fatores explicam a redução da natalidade no Brasil desde os anos 1960, como a urbanização e o maior acesso à educação. De lá para cá, a taxa de fecundidade caiu de 6 filhos por mulher para apenas 1,7, mesmo com o aborto sendo ilegal.

Ele explica que antigamente as famílias na zona rural costumavam ter muitos filhos para ajudar no sustento da casa. Com a modernização da economia, a redução da mortalidade e a urbanização, isso deixou de ser necessário.

"Essa argumentação (de Cunha) não tem o menor fundamento. O Brasil é conhecido como um dos países que nunca tiveram uma política de controle da natalidade explícita. Aqui, a queda da fecundidade aconteceu por desejo das famílias. Não tem uma conspiração internacional", ressalta.

O professor defende que o aborto é questão de saúde pública, argumentando que muitas mulheres, principalmente as mais pobres, morrem fazendo abortos inseguros.

"Ninguém acha que aborto é uma coisa tranquila, é traumático. Mas mais traumático é a pessoa ter uma gravidez indesejada, você forçar uma mulher a ter um filho que ela nem quer", opina.

Incoerente

Eustáquio considera incoerente o posicionamento de Cunha ao criticar o capitalismo. Como parlamentar, o peemedebista costuma atuar alinhado aos interesses do liberalismo econômico.

"Ele tem uma visão liberal da economia e uma visão extremamente conservadora dessa parte moral porque ele quer agradar um determinado eleitorado", diz.

Projeto de lei de autoria de Eduardo Cunha ainda terá que ser votado pelo plenário da Câmara

Cunha é acusado de possuir contas milionárias na Suíça com recursos desviados da Petrobras. Ele nega as acusações.

A BBC Brasil procurou o presidente da Câmara, mas ele não quis responder às críticas a sua teoria. Sua assessoria disse apenas que o projeto é de 2013 e outros deputados assinam a proposta.

O texto argumentativo, porém, é de autoria apenas de Cunha, que foi o autor original do projeto de lei, cujo conteúdo depois foi ampliado.

Aborto legal

A legislação brasileira considera o aborto legal em casos em que houver risco de vida para a mãe, quando o feto for anencéfalo (sem cérebro) ou quando a gravidez for resultado de um estupro. Na prática, o projeto assinado por Cunha dificulta o procedimento no último caso.

Hoje, se uma mulher engravidar em decorrência de abuso sexual, pode ir diretamente aos hospitais que realizam o procedimento. Caso o projeto de Cunha seja aprovado no Congresso, a mulher será obrigada antes a comparecer a uma delegacia para registrar ocorrência e se submeter a um exame de corpo de delito para comprovar o abuso.



Entre outras mudanças, o projeto também torna crime induzir uma pessoa a abortar ou prestar qualquer auxílio nesse sentido, exceto nos casos de aborto legal.

Outro ponto polêmico é o que permite que o profissional de saúde se recuse a fornecer ou administrar procedimento ou medicamento que "considere abortivo" caso isso viole sua consciência.

Houve controvérsia sobre uma suposta tentativa de proibir a pílula do dia seguinte, mas isso não foi incluído no texto final aprovado na CCJ.

No Facebook, Cunha afirmou na quarta-feira que o projeto de lei "vai contra a impunidade, incentivando as vítimas reais a registrarem Boletim de Ocorrência; ajudando a combater este crime hediondo (o estupro)".

O post despertou comentários de apoio e crítica à medida. Um dos seguidores do deputado escreveu: "Parabéns, Eduardo Cunha, família e vida em primeiro lugar".

Já em protesto contra a proposta, mulheres passaram a fazer circular nas redes sociais fotografias em que seguram cartazes com os dizeres "Pílula fica, Cunha sai", numa referência à expectativa de que as denúncias de corrupção possam levar à queda do presidente da Câmara.

Também foram criados no Facebook eventos convocando manifestações contra o projeto de lei em diversas cidades para esta semana. O maior deles, marcado para sábado em Brasília, tem confirmação de quase 50 mil pessoas.

* Colaborou Adriano Brito, da BBC Brasil em São Paulo