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Tim Vickery: Será o impeachment uma 'cirurgia' drástica demais no corpo político do Brasil?

Tim Vickery* - Colunista da BBC Brasil

11/04/2016 11h50

Um homem muito mais sábio do que eu (sei que a concorrência é grande - neste caso se trata de Milan Kundera) notou o seguinte: que "penso, logo existo" é uma ideia intelectual que subestima as dores de dente.

É uma sacada genial. Uma ideia pode ser compartilhada por muita gente. Mas o momento em que a gente está mais consciente da nossa própria existência é aquele da dor. Ele pertence somente a nós, é intransferível, nos tranca dentro de nosso mundinho.

Tenho refletido bastante sobre esse assunto ultimamente. Fiz uma cirurgia na próstata. O procedimento foi um sucesso, mas acabou sendo maior do que se esperava. Fui internado num sábado de manhã com a esperança de receber alta no domingo à noite. Mas a coisa se complicou e acabei ficando vários dias a mais no hospital.

Pode ser que o meu corpo não tenha reagido bem à anestesia. Com certeza não reagiu bem à bateria de medicamentos que veio depois. Se o objetivo era interromper o enjoo, na prática só causou mais enjoo ainda. Não parava de vomitar, fiquei bastante debilitado.

E o tempo não passava. Parecia que a cada cinco minutos eu estava fazendo a mesma pergunta - que horas são? E recebendo a resposta com desespero. Porque uma situação assim tem um aspecto muito forte.

Normalmente o tempo é nosso aliado - fornece as horas para a gente preencher com dever e lazer. Mas a enfermidade transforma o tempo em tortura. Não da para fazer nada para usufruir da grande bênção do tempo. Não se pode trabalhar, nem relaxar, nem dormir. No auge de meu delírio, ficava pedindo calmantes para apagar. Talvez tivesse sido melhor se a solicitação não tivesse sido atendida.

Sem nenhuma experiência nesse campo, não sabia nada do poder desses tipos de remédios. Mexeu bastante com o lado psicológico. Por dias depois, mesmo quando já estava em casa, sofri os efeitos. Senti um bombardeio de sentimentos totalmente inéditos para mim. O sono, quando veio, foi cheio de turbulências. Nas horas acordadas, vivi ondas de depressão, a impressão e o medo de que nada na vida vale a pena. Nem estava mais me reconhecendo.

Com um astral tão baixo, fica difícil dialogar com o mundo. Acredito que assim, temos todos uma tendência a nos fecharmos em nós mesmos e a concentrar nossas forças internamente até o temporal passar. Mas mesmo nos meus piores momentos, uma comparação veio à tona.

Uma cirurgia - e felizmente, nos meus quase 51 anos, essa foi a minha primeira - provavelmente vai gerar efeitos fortes porque se trata de uma intervenção violenta no corpo.

No corpo político, o equivalente à definição de uma intervenção violenta se chama "impeachment". É uma tentativa cirúrgica de tirar a cabeça do corpo. Óbvio que um procedimento assim pode gerar efeitos colaterais muito fortes.

Claro, cada cirurgia é um caso, cada corpo, humano ou político, vai reagir de sua própria maneira. Muitos lembram que a operação para tirar Fernando Collor da Presidência não causou terremotos. Mas o corpo hoje em dia é completamente diferente. Collor foi uma fabricação. Quando caiu já não representava quase ninguém. Era um componente do sistema político que deu para remover sem grandes contratempos.

A situação atual é completamente diferente. Dilma Rousseff, com todas as críticas que possam ser feitas a seu mandato e ao seu partido, conta ainda com uma sólida, ainda que diminuída, base de apoio. O impeachment tira os votos de milhões de eleitores. Essa interrupção tão abrupta pode gerar um nível de ódio duradouro. Pode condenar qualquer governo que venha depois a uma crise de legitimidade. Quem terá votado em seu projeto? Qual seria, na verdade, a base de seu mandato?

Pós-cirurgia, são grandes as chances de o corpo político brasileiro pegar uma febre e ter de ir às pressas para o pronto-socorro.

Posso afirmar, no caso da minha pequena e irrelevante cirurgia, que o procedimento foi totalmente válido. Já estou recuperado e já lidei com um problema que, sem tratamento, poderia conduzir até a uma infecção generalizada. Ou seja, já está claro que valeu a pena me sujeitar ao lado negativo da cirurgia.

Pode-se realmente afirmar a mesma coisa sobre uma intervenção tão drástica no corpo político do país?

  • *Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick

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