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Por que a morte do líder de um dos regimes mais brutais do mundo aumenta temor de extremismo islâmico

Brandan Smialowski/ AFP
Imagem: Brandan Smialowski/ AFP

Rafael Gomez*

Da BBC Brasil em Londres

02/09/2016 16h29

Enquanto o Brasil acompanhava nesta semana o desfecho ruidoso da disputa política que culminou com o afastamento definitivo de Dilma Rousseff e o fim de 13 anos de governo petista, do outro lado do mundo, um outro país se preparava para sua primeira transição em 27 anos. Em silêncio.

A ex-república soviética do Uzbequistão, o país mais populoso da Ásia Central, desde 1989 (antes mesmo de sua independência em 1991) teve apenas um líder - Islam Karimov. E, após dias de especulações a respeito de seu estado de saúde, nesta sexta-feira o governo uzbeque confirmou sua morte, aos 78 anos, após um derrame cerebral na semana passada.

Um funeral está sendo preparado para este sábado na sua cidade natal, Samarkand. Segundo um site uzbeque, há a expectativa da presença (não confirmada) do secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry. A Rússia enviará seu premiê Dmitri Medvedev à cerimônia.

A sucessão no distante Uzbequistão fez algo raro - colocou nos holofotes um dos regimes mais repressivos do mundo, cuja influência e importância podem passar despercebidas à primeira vista aos que não acompanham a novela do "grande jogo" geopolítico da Ásia Central.

O fim da Era Karimov tem o potencial de gerar ondas de impacto que podem estremecer uma das regiões mais instáveis do mundo, recrudescendo conflitos adormecidos, estabelecendo condições para o avanço do radicalismo islâmico e gerando um nova corrida internacional por valiosos recursos minerais.

O "segundo Tamerlão"

Karimov nasceu em Samarkand, cidade que ecoa no imaginário ocidental como a rica capital de Tamerlão, um obscuro conquistador que no século 15 sucedeu a Genghis Khan e conquistou, com violência indizível, boa parte da Ásia.

Desenvolvido por Karimov como um símbolo da nação que passou a existir após a queda da URSS em 1991, Tamerlão hoje é a visão que todos têm ao visitar o Uzbequistão.

As praças, os prédios públicos e museus todos mostram ilustrações e estátuas de Tamerlão juntamente com frases de Karimov em que ele enaltece o orgulho uzbeque e seu líder ancestral, considerado duro e implacável, mas sábio.

Uma bizarra relação em que Karimov se apropriou de uma figura histórica para um culto de personalidade às escondidas.

Guerra ao terror

Mas Karimov se formou com várias faces. Membro da liderança comunista na URSS, após a independência ele manteve alguns de seus valores - como a inclinação para manter um controle rígido sobre a sociedade e a defesa do secularismo em um país onde o islã viveu um natural renascimento após a queda do comunismo.

Dois eventos solidificaram seu regime como um dos mais brutais do mundo. Na sua primeira década na Presidência, testemunhou o avanço do islã radical por meio da organização Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU) - responsabilizado por ele por uma tentativa de assassinato em 1999.

O MIU atacou o Uzbequistão e só deixou de ser uma real ameaça com a ofensiva militar ocidental contra o Afeganistão, a partir de 2001, que afetou duramente a organização, matando um de seus líderes.

Em 11 de setembro de 2001, o ataque às Torres Gêmeas de Nova York foi transmitido no Uzbequistão ao vivo apenas por um canal de TV russo. Quando o telejornal da principal TV do país finalmente reportou o ocorrido, no dia seguinte, foi para colocar no ar um discurso de Karimov, em que ele reafirmava a ameaça do radicalismo islâmico.

Foi o cartão verde para ainda mais repressão aos muçulmanos praticantes do país, vítimas de prisões indiscriminadas e torturas. A guerra contra o radicalismo islâmico e a necessidade de manter a estabilidade sempre foram a principal justificativa para "manter o controle".

O Uzbequistão de repente, virou um aliado fundamental da coalizão ocidental na chamada "guerra ao terror", cedendo uma base aérea para os americanos e permitindo o uso de seu território como corredor de suprimentos para o vizinho Afeganistão.

Em 2005, a panela de pressão doméstica de Karimov estourou. Um protesto pacífico na cidade de Andijan, no leste do país, foi reprimido pela polícia e rapidamente virou um banho de sangue, levando à morte de centenas. O massacre provocou críticas de governos do Ocidente, especialmente os Estados Unidos, ao Uzbequistão, provocando uma ruptura.

Os EUA foram expulsos da base militar, e o Uzbequistão se isolou ainda mais, desconfiado do Ocidente. Viria um período de reaproximação com a Rússia de Vladimir Putin, mas "compreensiva" com as "contingências" do Estado uzbeque.

Diplomacia do equilíbrio

A política externa uzbeque sob Karimov na verdade sempre foi uma balança. Períodos de aproximação com os EUA eram ponderados com a possibilidade de aproximação com russos e chineses. E vice-versa.

Ele entendia a importância de seu país. Primeiramente, do ponto de vista econômico, pela riqueza de recursos - reservas de petróleo estimadas em 600 milhões de barris, de gás, estimadas em 1 trilhão de metros cúbicos, a sétima maior produção de ouro do mundo. Isso, em um mercado fechado, com grande potencial para indústrias estrangeiras.

Um país com importância também pelo potencial para empresas interessadas no consumo da maior população da Ásia Central, 30 milhões de pessoas, sedentas por produtos. E importância por ser um corredor para as exportações de ricos vizinhos - da China para a Europa e vice-versa, parte da Rota da Seda contemporânea.

Mas o maior peso do Uzbequistão sem dúvida ainda é geopolítico, e daí vem a maior preocupação de todo o mundo com uma transição suave e previsível, que não gere protestos ou distúrbios sociais.

Em um legado das imperfeitas fronteiras soviéticas, milhares de uzbeques vivem nas divisas com os países vizinhos. Conflitos de fronteira entre o Uzbequistão e seus vizinhos Quirguistão e Tadjiquistão permanecem virtualmente controlados, com tensão esporádica e passageira. O que aconteceria se um novo líder uzbeque quisesse colocar o dedo nessas feridas?

O que aconteceria se, numa onda de revolta social e política, o Uzbequistão mergulhasse no caos? Movimentos islâmicos poderiam vir à superfície, a longa fronteira com o Uzbequistão poderia se tornar porosa, oferecendo um novo terreno para bases do Taleban e a volta do MIU.

Transição pacífica?

Analistas, porém, são quase unânimes ao afirmar que a transição no Uzbequistão deve ocorrer sem sobressaltos - sem gerar mudanças radicais no ambiente doméstico de repressão.

O silêncio das autoridades do país após as primeiras notícias sobre o derrame de Karimov sugere que as elites locais estiveram envolvidas em frenéticas negociações para encontrar um nome que, como o presidente, seja de consenso e capaz de equilibrar os interesses envolvidos.

Isso pode ser difícil. E caso um nome de consenso demore a ser encontrado, existe o risco crescente de instabilidade. Mas é importante lembrar que a oposição política foi eliminada por Karimov ao longo dos seus anos no poder, quando ele construiu uma estrutura em que fortes interesses garantem a continuidade do status quo. Uma estrutura mais forte que qualquer líder.

Não que um novo presidente não possa realizar mudanças. Provavelmente, o sucessor começará seu governo prometendo reformas para atrair o apoio e a simpatia populares. E pode se aproximar de seus vizinhos ou de alguma potência, mudando um pouco a fórmula externa encontrada por Karimov.

Essa mudança de dinâmica pode estremecer o mundo e, ser, por exemplo, o detalhe que faltava para a "reconquista" de hegemonia geopolítica da Rússia na região.

Ou um lance de gênio de Barack Obama em seus meses de despedida - se aliar ao novo presidente e clamar para si a vitória de ter estimulado o fim de um regime brutal, fincando sua bandeira firmemente no quintal de Moscou.

* Rafael Gomez é mestre em estudos da Rússia e da Europa Oriental com especialização em Ásia Central pela Universidade de Birmingham, no Reino Unido