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Violência no Rio: 'Por que não levaram preso?', questiona mãe de jovem morto na operação policial mais mortífera da década no Rio

Tatiana Antunes contesta as versões apresentadas pela polícia para a morte de seu filho, Felipe - Agência Brasil/BBC
Tatiana Antunes contesta as versões apresentadas pela polícia para a morte de seu filho, Felipe Imagem: Agência Brasil/BBC

Júlia Dias Carneiro - Da BBC News Brasil no Rio de Janeiro

Da BBC News Brasil, no Rio de Janeiro

13/02/2019 09h49

Parentes de vítimas no Rio denunciam tortura de jovens antes de sua morte em ação policial no Morro do Fallet, que terminou com o maior número de óbitos em 12 anos.

Atualizada às 16h

Na quinta-feira de noite, Tatiana Antunes de Carvalho, 38, se apressou no fogão diante do pedido do filho: "Faz logo essa lasanha, mãe, estou com fome." Ela pôs a mesa e se sentou com ele e o sobrinho, que morava com a família, sem saber que seria o último jantar com os dois.

Na última sexta-feira, Felipe Guilherme Antunes, de 21 anos, e Enzo Carvalho, de 18, saíram de casa cedo depois de tomar um gole de café mas dispensando o pão que Tatiana lhes ofereceu.

Poucas horas depois, seus corpos ensanguentados estavam sendo colocados em um carro aberto do Batalhão do Choque. Eles eram dois dos 13 jovens mortos em uma operação policial nos morros do Fallet, Fogueteiro, Coroa e Prazeres, no último dia 8 de fevereiro.

No sábado, outros dois corpos foram encontrados na mata no Morro dos Prazeres, elevando para 15 o número de mortos na operação policial - a mais mortífera no Rio desde 2007, quando uma incursão no Complexo do Alemão, na zona norte, matou 19 pessoas.

A Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que as vítimas eram criminosos fortemente armados, que reagiram à chegada da polícia e foram mortos em confronto. Durante a operação, policiais apreenderam quatro fuzis, 14 pistolas, seis granadas, três radiocomunicadores, além de carregadores e drogas. Policiais prenderam 11 pessoas durante a ação.

Famílias confirmam que os jovens mortos tinham envolvimento com o tráfico, mas contestam a versão da polícia de que teria havido confronto. Afirmam que eles se renderam, mas foram torturados e executados.

Tatiana pergunta, ecoando a pergunta feita por tantas outras mães: "Por que mataram? Por que não levaram preso?".

"Não estou lutando para dizer que o meu filho não era (criminoso). Nenhuma mãe está tirando o que eles foram, ou o que não foram. Nós queremos justiça pelo jeito que mataram eles", afirma. "Estamos condenando o assassinato. Eles (os policiais) tinham que ter levado eles presos, e não fazer o que fizeram."

Tatiana fez parte de uma reunião emocionada realizada no Morro do Fallet na quarta-feira, onde moradores e familiares disseram que os jovens foram executados e submetidos a tortura, facadas e mutilações.

As mortes estão sendo investigadas pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil, que ainda aguarda a conclusão do laudo pericial com as circunstâncias das mortes, bem como dos laudos cadavéricos descrevendo como os rapazes foram mortos, antes de se pronunciar.

A operação também está sendo investigada pelo Ministério Público do Rio, que ouvirá nesta semana os comandantes dos Batalhões de Choque, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Comando de Operações Especiais (COE). A Pmerj abriu uma sindicância interna para apurar as mortes decorrentes de intervenção policial.

'Cenário preocupante'

O episódio gerou forte preocupação entre grupos de defesa de direitos humanos, atentos a sinais de arrefecimento de violência policial diante de sinalizações dadas pelo novo governador do Rio, Wilson Witzel, e temerosos de impactos do chamado excludente de ilicitude em casos de mortes cometidas por policiais, incluído no pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

O projeto de Moro amplia as hipóteses em que a ação de um policial pode ser considerada como legítima defesa, isentando-o de culpa. Na lei atual, isso ocorre quando o policial age para se defender de agressão "atual ou iminente". A nova proposta abrange a legítima defesa para ações que "previnam" agressões a si, a outros ou a vítima mantida refém.

Além disso, prevê que a pena poderá ser reduzida ou deixar de ser aplicada se o policial cometer excessos decorrentes de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Críticos temem que as mudanças representem uma "licença para matar". Moro nega, e diz que intenção é deixar a legislação mais clara.

Já Witzel se elegeu com um discurso de enfrentamento pesado ao crime organizado e defende publicamente o "abate" de criminosos armados de grosso calibre. "Aquele que pega em armas e chama para si a guerra, a guerra deve ter. Como terroristas serão tratados", disse, durante sua cerimônia de posse.

Para Pedro Strozenberg, ouvidor da Defensoria Pública do Rio, a letalidade concentrada nesta primeira grande operação do governo Witzel desperta o temor de "um cenário muito preocupante".

"Uma operação com esse patamar de letalidade não pode ser considerada uma ação regular. É preciso que sua legalidade e a sua conduta sejam apuradas. Isso não pode virar um patamar dos novos tempos", afirma.

Ele ressalta a importância de que as investigações da Polícia Civil, do Ministério Público Estadual e da Corregedoria da Polícia Militar possam apontar com clareza o que aconteceu, e se houve o desvio dos policiais, ou se eles tiveram sua conduta amparada pela lei.

"Isso para nós é o ponto principal. Não queremos impedir, atrapalhar nem desqualificar a atuação policial. Mas ela tem que ser amparada na lei", ressalta.

Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional cobram uma investigação "detalhada, imparcial e independente" para esclarecer as circunstâncias das mortes no Fallet-Fogueteiro, ressaltando o alto número de homicídios decorrentes de intervenções policiais no Rio - que atingiu patamar recorde no ano passado, com 1.532 homicídios pela polícia, contra 1.127 em 2017.

"Historicamente, a maioria dos casos de homicídios pela polícia no Rio de Janeiro não é investigado e nem responsabilizado e essa impunidade alimenta o ciclo de violência da polícia", diz a nota da Anistia.

'Tristeza e raiva'

Na quarta-feira, cerca de 60 moradores e familiares dos jovens mortos nas comunidades de Santa Teresa se reuniram no Morro do Fallet, com quase 40 representantes de instituições como as Defensorias Públicas do Rio e da União e as comissões de direitos humanos da OAB-RJ e da Assembleia Legislativa do Rio e jornalistas.

O encontro foi marcado por momentos catárticos, com forte emoção, tristeza e raiva, bem como críticas à atuação policial.

"Os moradores tiveram falas foram muito contundentes e homogêneas afirmando que uma parte significativa dessas mortes poderia ter sido evitada, e que a polícia tinha condições de prender, e não matar ", relata Pedro Strozenberg.

"Os moradores não questionavam a atuação da polícia para enfrentar a criminalidade, mas insistiam que a resposta poderia ter sido de mais prisões, e menos mortes", afirma o ouvidor da Defensoria Pública.

Guerra de facções

Segundo assessoria de comunicação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a operação de sexta-feira foi realizada para intervir "numa guerra entre facções criminosas rivais, que disputam o controle de território naquela região, tendo como principal preocupação a preservação de vidas".

A corporação informa que mobilizou suas unidades especializadas - o Batalhão de Choque e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) com base em informações das áreas de inteligência.

A operação acabou em um imóvel que será chave para a investigação - uma casa na Rua Eliseu Visconti, no Morro do Fallet, onde, segundo moradores, traficantes se refugiaram.

De acordo com os depoimentos de moradores, foi lá que morreram sete das 13 vítimas encontradas na sexta-feira. O imóvel ficou com o piso e as paredes cobertas de sangue e com muitas marcas de tiros.

A casa fica perto da de Tatiana. Naquela manhã, quando Felipe Guilherme saiu de casa, ela não se preocupara, porque a madrugada havia sido calma, sem troca de tiros. Ao ouvir relatos sobre a operação policial, ela correu para a rua.

"Eu cheguei na casa e pedi para entrar para ver o meu filho, mas eles (os policiais) não deixaram. Os vizinhos todos foram para lá, porque os adolescentes estavam gritando socorro, mas não deixavam a gente chegar perto", diz.

A Polícia Militar do Rio de Janeiro afirma que os criminosos reagiram à voz de prisão dada pelos policiais e atiraram contra os militares, sendo subsequentemente mortos em confronto.

As vítimas, todos rapazes com idades entre 15 e 22 anos, foram levadas pelo Batalhão de Choque para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro do Rio. De acordo com a Agência Brasil, médicos de plantão informaram que os 13 jovens já chegaram mortos.

Uma foto na imprensa flagrou dois policiais sentados na caçamba aberta da caminhonete do Choque, sobre corpos cobertos por lençóis brancos.

A Polícia Militar instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar as mortes, medida padrão tomada quando operações resultam em lesão corporal ou morte.

'Para que essa crueldade?'

Tatiana contesta as versões apresentadas pela polícia. O laudo de óbito de seu filho diz que ele morreu no hospital, mas ela viu fotos dele morto antes disso, no ladrilho da casa onde houve o suposto confronto.

Ela foi reconhecer o corpo de seu filho no Instituto Médico Legal (IML). Diz que seu pescoço estava quebrado, que ele tinha marcas de facadas e que seu intestino estava exposto. Ela não acredita que ele tenha sido morto por tiros, porque apesar de ter uma perfuração no peito, não havia marcas de tiros saindo por suas costas.

Outros jovens tinham marcas de cortes no rosto, registrados em um vídeo feito pela equipe do hospital, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.

"Meu filho foi torturado até o final", acredita. "Para que essa crueldade? Eu quero uma explicação do Estado. Eu quero Justiça", exige Tatiana. "Que policiais são esses que estão com a farda para matar?"

Tatiana enterrou o filho Felipe Guilherme e o sobrinho Enzo no domingo, no cemitério São João Batista, em Botafogo. Preferia tê-los sepultado no cemitério de São Francisco de Paula, no Catumbi, mais perto de sua casa no Fallet - mas diz que a facção criminosa rival à do seu filho proibiu que os jovens do grupo inimigo fossem enterrados lá.

Felipe Guilherme era o mais velho dos quatro filhos de Tatiana. Ela nasceu e cresceu no Morro do Fallet e criou os filhos sozinha, com o salário de doméstica e de manicure, e com a ajuda de sua mãe.

"Eu fui mãe e pai do meu filho. Botei ele na escola, cuidei dele. Você cria o seu filho na maior luta para eles tirarem a vida dele desse jeito? Pelo amor de Deus, eu quero Justiça. Que eles paguem pelo que fizeram. Eu vou brigar e vou botar a minha cara, para eles verem a dor de uma mãe", emociona-se.


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