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Covid-19: como a proposta de que empresas 'furem fila' da vacina pode atrapalhar o controle da pandemia

Os indígenas foram um dos primeiros grupos contemplados na vacinação contra a covid-19 - GETTY IMAGES
Os indígenas foram um dos primeiros grupos contemplados na vacinação contra a covid-19 Imagem: GETTY IMAGES

André Biernath - Da BBC News Brasil em São Paulo

27/04/2021 17h28

A ordem de imunização importa: projetos que permitem que empresas vacinem seus funcionários antes ou indivíduos que furam a fila só trazem prejuízos à saúde pública e comprometem a resposta à pandemia.

No dia 1º de dezembro de 2020, o Ministério da Saúde definiu oficialmente quais seriam os grupos prioritários da vacinação contra a covid-19 no Brasil.

Nesses cinco meses, porém, foram várias as tentativas (legais e ilegais) de "furar a fila" ou permitir às pessoas que não integram o público-alvo tomarem as doses antes das outras.

O assunto voltou a ganhar fôlego nas primeiras semanas de abril, quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que permitiria a compra de lotes dos imunizantes pela iniciativa privada, que não precisaria necessariamente fazer doações ao Sistema Único de Saúde (SUS).

A polêmica proposta encontra forte resistência no Senado Federal e esbarra numa série de questões práticas, legais e éticas.

Enquanto o debate legislativo segue em pleno vapor, no campo da ciência o consenso é maior: a ordem de imunização importa e definir os grupos prioritários tem o potencial de desafogar o sistema de saúde e salvar vidas.

Mas como essa fila da vacinação foi definida?

Cobertor curto

Antes de entender a ordem das campanhas, é preciso ter em mente que a discussão é ainda mais importante num contexto em que há escassez de vacinas.

Passados três meses desde o início da vacinação, o Brasil distribuiu cerca 53 milhões de doses, quantia suficiente para proteger cerca de 26,5 milhões de pessoas.

Ou seja: o montante disponibilizado até o momento permite resguardar pouco mais de 10% da população brasileira.

Agora, imagine que os gestores de saúde não tivessem feito um plano e definido os grupos que receberiam o produto em primeiro lugar: a quantidade de pessoas que correria até os postos de saúde seria enorme.

Isso, por sua vez, aumentaria o risco de conflitos e disparidades: pode ser que milhares jovens tomassem a picada no braço antes de seus pais ou avós, quando sabemos que o risco de complicações e morte pela covid-19 sobe conforme a idade avança.

Poderíamos ver também problemas de desigualdade geográfica e social, com cidades e Estados de maior poder aquisitivo garantido uma fatia maior de doses em relação a outros locais mais pobres.

A limitação das vacinas é um fator importante, mas vale uma ressalva: uma fila de prioridades seria necessária mesmo se tivéssemos garantido de uma só vez doses suficientes para todos os brasileiros.

Essa organização evita que as unidades básicas de saúde fiquem lotadas ? ainda mais quando sabemos que a aglomeração é um dos maiores fatores de risco para a transmissão da covid-19.

A ordem estabelecida

De modo bastante resumido, a maioria dos países onde a campanha de vacinação contra a covid-19 já começou usaram três critérios básicos para definir os grupos prioritários:

  • O risco de desenvolver formas graves da doença
  • O risco de exposição ao coronavírus
  • Situações de vulnerabilidade social

"No primeiro grupo estão os idosos e os indivíduos com comorbidades, como doenças cardíacas, pulmonares e renais", exemplifica o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.

Já a segunda turma inclui os profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia e outras categorias laborais, como professores, policiais, bombeiros e trabalhadores do setor de transporte e logística.

A terceira inclui populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas, além de pessoas em situação de rua e indivíduos privados de liberdade.

Esses três grupos podem ser subdivididos em uma série de outras categorias mais detalhadas ? e é justamente a partir daí que se define a ordem de vacinação.

Vamos analisar o que foi feito no Brasil: a maioria dos Estados e municípios começou a campanha de imunização pelos trabalhadores da área de saúde, a população indígena e os indivíduos de idade avançada ou com deficiência que moram em instituições de longa permanência.

"Isso foi necessário para reduzir a taxa de óbitos por covid-19 e desafogar minimamente o sistema de saúde, permitindo uma maior proteção aos profissionais que atuam nesses ambientes", contextualiza a biotecnologista Larissa Brussa Reis, que integra a Rede Análise Covid-19.

Quando essa primeira turma estava vacinada, o foco mudou para os idosos: primeiro aqueles com mais de 90 anos, depois os que tinham entre 85 e 89 anos e assim por diante.

A tendência é que, se tudo der certo, todos os brasileiros com mais de 60 anos estejam imunizados entre o final de abril e início de maio.

Com isso, será possível partir para os próximos contemplados, que devem envolver profissionais da educação, forças de segurança e salvamento e portadores de comorbidades.

Justo ou injusto?

É claro que há uma série de controvérsias nessa fila estabelecida: alguns especialistas chamam a atenção e criticam a não-inclusão prioritária dos trabalhadores de setores como transporte público e cadeia de alimentação.

Eles entendem que os critérios de idade e das comorbidades são injustos e privilegiam as camadas mais abastadas da sociedade.

"A expectativa de vida em pobres, negros e homens é significativamente menor, portanto os mais idosos são mulheres-brancas-ricas. No entanto, a mortalidade da covid-19 tem sido maior em homens-pretos-pobres", raciocina o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Universidade de São Paulo, numa série de postagens no Twitter.

"A mortalidade por covid-19 em homens-pretos-pobres não é genética ou biológica, mas se deve ao fato de eles trabalharem nos setores essenciais e de maior risco na sociedade: saúde, segurança, serviços públicos, transportes e rede alimentar", completa.

De acordo com a última atualização do Ministério da Saúde, o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19 conta com 29 grupos prioritários, que totalizam 77,2 milhões de brasileiros.

Esse planejamento pode ser adaptado e modificado pelos estados e municípios, de acordo com a realidade de cada local.

A ordem importa

Como explicado mais acima, a definição dos grupos prioritários permite proteger justamente aquelas pessoas que, por diversos motivos, correm maior risco de se infectar com o coronavírus ou desenvolver as formas graves da covid-19.

Numa perspectiva individual, isso é ótimo para os vacinados: os estudos clínicos asseguram que os imunizantes aprovados têm uma ótima capacidade de prevenir os casos mais sérios da doença, que exigem hospitalização, intubação e podem matar.

Mas do ponto de vista coletivo, a vacinação organizada dos públicos-alvo faz bem para toda a sociedade.

"O objetivo da campanha é justamente diminuir a carga da doença. A partir do momento que avançarmos nos percentuais de pessoas vacinadas, conseguiremos diminuir o impacto da pandemia", esclarece Cunha.

E não dá pra se esquecer dos benefícios indiretos dessa estratégia: com os grupos prioritários protegidos, a tendência é que a necessidade de leitos de enfermaria e UTI diminua.

A menor pressão no sistema de saúde significa uma situação muito mais tranquila para todos aqueles que precisam de um atendimento médico por covid-19, acidente de trânsito, ataque cardíaco ou qualquer outra condição de saúde.

Infelizmente, nas últimas semanas, muitos brasileiros morreram à espera de um tratamento: com os hospitais saturados, não havia condições de prestar socorro a todos os casos que chegaram.

Ainda não é possível ter ideia do tamanho dessa avalanche, mas, ao longo das próximas semanas, meses e anos, os cientistas terão melhores condições de entender e estimar o impacto que a pandemia teve no nosso país.

Menos mortes

Não é exagero dizer que estabelecer e obedecer a ordem dos grupos prioritários tem o potencial de salvar vidas.

Essa noção ficou mais clara em uma pesquisa feita na Universidade da Califórnia em Davis (EUA) e recém-publicada na revista científica PNAS.

Os cientistas usaram as taxas de transmissão do coronavírus e a alocação de doses de vacinas para estimar uma série de cenários sobre a evolução da pandemia.

Eles calcularam que, ao seguir alguns critérios na vacinação (como colocar profissionais de saúde e idosos em primeiro lugar), o índice de infecções, mortes e anos de vida perdidos para a covid-19 fica entre 17 e 44% mais baixo na comparação com um cenário em que não há um fluxograma do tipo.

"Também observamos que nas regiões onde há um aumento nas taxas de contágio e onde as pessoas não usam máscaras ou não mantêm o distanciamento social, a priorização nas vacinas é ainda mais importante para o controle da pandemia", disse o epidemiologista Jack Buckner, um dos autores da pesquisa, em comunicado à imprensa.

Vale mencionar que os cálculos da pesquisa levaram em conta a realidade americana, mas é bem possível que o cenário se repita, em maior ou menor grau, em outros países.

Os fura-filas

Seguindo o raciocínio, as pessoas que tomam a vacina sem fazer parte dos grupos prioritários neste momento podem até beneficiar a própria saúde, mas estão prejudicando o resto da sociedade.

Para começo de conversa, ao tomarem as duas doses de forma ilegal, elas "roubam" o lugar e a oportunidade de alguém precisaria se proteger com mais urgência.

E esse indivíduo não vacinado segue por mais tempo com risco alto de pegar o coronavírus e desenvolver as formas graves da infecção.

No contexto amplo, isso significa que a pandemia se prolongará e os hospitais continuarão saturados por mais tempo ? o que, como vimos, é ruim para todo mundo.

Segundo as fontes ouvidas pela BBC News Brasil, um cenário negativo desses, que por ora está restrito a alguns desvios e situações pontuais, pode se institucionalizar se um projeto de lei em discussão no Senado Federal for aprovado.

A proposta, que já foi discutida e votada na Câmara dos Deputados, permite que empresas privadas comprem vacinas e apliquem imediatamente metade das doses em seus "empregados, cooperados, associados e outros trabalhadores que lhe prestem serviços".

Detalhe importante: os imunizantes poderiam ser tanto aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou por "qualquer autoridade sanitária estrangeira reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)".

A nova regra mudaria a lei em vigor, que foi sancionada há pouco mais de um mês.

Atualmente, empresas podem até adquirir os imunizantes contra a covid-19, mas eles precisam ter liberação da Anvisa e precisam ser doados integralmente ao SUS até que todos os grupos prioritários sejam contemplados pela campanha nacional de vacinação.

Só a partir daí os entes privados poderiam usar metade dos lotes que eles compraram (a outra parcela iria direto para a rede pública) e precisam oferecer as doses gratuitamente aos seus colaboradores.

Será que vai pra frente?

De acordo com as últimas manifestações, é bastante improvável que o novo projeto de lei tenha vida fácil no Senado Federal.

Em primeiro lugar, a regra atual foi proposta e elaborada com a contribuição direta do presidente da casa, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Segundo, políticos de diversos partidos e espectros ideológicos já se posicionaram contra a mudança.

Nas redes sociais, o senador Humberto Costa (PT-PE) definiu o projeto como "algo inaceitável, a institucionalização de um apartheid social".

"Num país onde morrem milhares de pessoas por covid todos os dias, a Câmara tomou uma decisão extremamente grave, equivocada e excludente. O critério principal para a vacinação no país passa a ser o da capacidade financeira de cada um. Quem pode pagar, se vacina. Quem não pode pagar, vai esperar o calendário do SUS. Vamos lutar no Senado para derrotar essa medida abominável", escreveu.

O também senador Eduardo Braga (DEM-AM) classificou a ideia como um "vale tudo" na corrida pela vacina:

"A iniciativa privada deve, sim, se somar aos esforços para a aquisição de vacinas. Mas o objetivo tem que ser o fortalecimento do Programa Nacional de Imunização, até que todos que fazem parte dos grupos prioritários sejam vacinados. Não dá para furar fila ou instituir um 'vale tudo' na corrida pela vacina, onde quem sai ganhando é quem tem dinheiro. O projeto apresentado pelo nosso presidente, senador Rodrigo Pacheco, foi bem claro nesse sentido. Já foi aprovado e já virou lei. Vamos cumpri-la", defendeu o senador no Twitter.

Em terceiro lugar, a possibilidade de as empresas brasileiras adquirirem os imunizantes no mercado nacional ou internacional é algo difícil até do ponto de vista prático: as principais produtoras de vacinas do mundo já deixaram bem claro que no atual momento só negociarão diretamente com governos.

Portanto, as opções de compra ficariam restritas aos produtos não aprovados pela Anvisa ou que estão numa fase preliminar das pesquisas ? o que certamente levanta sérias dúvidas sobre a eficácia e a segurança deles.

A perspectiva dos cientistas

Apesar do ritmo lento de vacinação contra a covid-19 no Brasil, em linhas gerais os grupos prioritários definidos desde o final de 2020 estão sendo respeitados nas campanhas estaduais e municipais.

Nesse sentido, qualquer iniciativa que desvie o foco e permita mais gente furar essa fila pode ser bastante maléfica aos progressos conquistados.

"Ao comprar vacinas para uso próprio, o setor privado desviaria doses que iriam para o Programa Nacional de Imunizações. No cenário de escassez que vivemos, é inaceitável que a imunização seja oferecida primeiro para quem tem dinheiro para pagar", protesta Brussa Reis.

Já Cunha entende que é hora de acelerar a campanha e seguir as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde.

"Uma discussão sobre compra de vacinas por empresas privadas não deveria acontecer agora. O Brasil já tem planos para vacinar toda a sua população por meio da rede pública".

"E quanto mais rápido terminarmos essa campanha, melhor para todo mundo", completa o médico.


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