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Seita de nazista pedófilo colaborou com ditadura de Pinochet no Chile

Entrada do que foi a Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera, que serviu ao nazismo e à ditadura - Mario Ruiz/EFE
Entrada do que foi a Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera, que serviu ao nazismo e à ditadura Imagem: Mario Ruiz/EFE

Júlia Talarn Rabascall

Em Villa Baviera (Chile)

09/07/2016 12h21

A primeira coisa que Luis Peebles percebeu ao descer do furgão militar foi o cheiro de campo e roupa limpa. Era uma noite fechada. O saco que cobria sua cabeça lhe impedia de ver onde estava. Escutou o cacarejo de galinhas. "Este não será um centro de torturas como os demais", pensou.

Era fevereiro de 1975. Antes do golpe militar contra Salvador Allende no Chile, Luis estudava Medicina e liderava o MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária) na cidade de Concepción.

Um ano atrás tinha sido capturado e transferido a diferentes centros de tortura da ditadura de Augusto Pinochet. Nenhum desses labirintos do horror se parecia com o lugar ao qual havia chegado naquela noite de verão.

Durante sete dias, Luis foi selvagemente torturado pelos oficiais do Exército chileno e por um homem com sotaque germânico especialmente cruel. Esse impiedoso alemão era Paul Schäfer, o líder pedófilo da seita Colônia Dignidade.

"Eles me fecharam em uma sala subterrânea parecida com um laboratório de Física. Tiraram minha roupa, me amarraram em um catre metálico e me puseram terminais elétricos por todas as partes. Dos pés aos ouvidos, passando pelo pênis, o ânus e o tórax", relatou.

Com uma mistura de tristeza e temperança, este médico psiquiatra lembrou como Schäfer dirigia as torturas quando os militares não eram "suficientemente" cruéis.

Colônia Dignidade, no Chile, a seita mais tenebrosa do século 20

"Quando aplicava a eletricidade, meu corpo se contorcia e convulsionava tanto que em uma ocasião quebrei uma perna do catre", detalhou.

Como Luis, cerca de 350 opositores foram torturados na Colônia Dignidade, enclave de uma seita alemã no sul do Chile que, entre 1961 e 2005, submeteu crianças, jovens e adultos a brutais castigos, manipulação mental e um impiedoso autoritarismo. Uma organização vertical que se aproximava do ideal da idiossincrasia pinochetista.

Com o triunfo do golpe de 1973, Schäfer ofereceu suas instalações à polícia secreta do regime militar. A Colônia Dignidade se tornou assim uma peça-chave do aparelho repressor da ditadura.

Schäfer estabeleceu uma estreita relação com Manuel Contreras, o chefe da polícia secreta, e com outros membros do regime militar. Decidiram fazer da Colônia Dignidade um centro de inteligência, treinamento, tortura e extermínio. Embora não se tenha números exatos, se estima que metade dos que entraram nunca saíram com vida.

A maioria dos colonos assegura que nunca imaginaram o que ocorria ali com os opositores a Pinochet; no entanto, alguns dirigentes, como Rudolph Cöllen, confessaram ao juiz ter queimado corpos e lançado as cinzas em um rio próximo.

Documentos detalham inclusive como alguns residentes - ex-membros do partido nazista - ministraram cursos sobre torturas, explosivos e inteligência a agentes da Direção Nacional de Inteligência (Dina) do Chile.

Testemunhos sobre o sigiloso enclave alemão asseguram que o lugar também serviu de refúgio para dirigentes nazistas, como Walter Rauff, inventor da câmara de gás móvel, e Gerhard Mertins, que nos anos 1960 se transformou em um dos maiores traficantes de armas do mundo.

Graças a esses vínculos, a Colônia Dignidade operou como base de contrabando e produção de armas e aparatos de vigilância para a ditadura chilena.

Fotografia mostra as crianças da Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile) - Villa Baviera - Villa Baviera
Fotografia mostra as crianças da Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile)
Imagem: Villa Baviera
Quando a polícia desmantelou a seita, em 2005, encontrou um grande arsenal de lança-foguetes, munição, granadas e até mesmo armas químicas, como gás sarin.

"O apoio deste lugar foi muito importante para que a ditadura se mantivesse durante 17 anos e chegasse aos níveis de repressão que alcançou", afirmou a presidente da Associação pela Memória e os Direitos Humanos da Colônia Dignidade, Margarita Romero.

Outro dos elementos que dá conta dos fortes laços entre a Colônia e a Dina foi a descoberta no sítio alemão de 45.000 fichas de informação sobre cidadãos chilenos.

Trata-se do maior arquivo sobre a repressão achado no Chile, só comparável em nível latino-americano com os Arquivos do Terror do Paraguai.

Seu conteúdo reflete um sistema de controle social próprio de uma sociedade orwelliana, com informação de todo tipo de pessoas, a maioria sem conotação política ou militar. Taxistas, professores, trabalhadores e inclusive prostitutas. A obsessão de Paul Schäfer não conhecia limites.

A história sobre a relação da Colônia Dignidade com a ditadura continua sendo um quebra-cabeças ao qual faltam muitas peças. As vítimas da repressão confiam que as várias causas abertas nos tribunais consigam algum dia preencher esses espaços vazios.

Visão geral do que foi a Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile) - Mario Ruiz/EFE - Mario Ruiz/EFE
Visão geral do que foi a Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile)
Imagem: Mario Ruiz/EFE
Quarto subterrâneo da antiga Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile) - Mario Ruiz/EFE - Mario Ruiz/EFE
Quarto subterrâneo da antiga Colônia Dignidade, atualmente Villa Baviera (Chile)
Imagem: Mario Ruiz/EFE