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Exclusivo: Investigação revela como blog defendia Dilma com rede de fakes em 2010

Juliana Gragnani - Da BBC Brasil em Londres

09/03/2018 09h08

Armando Santiago Jr. passava o dia inteiro atrás da tela do computador escrevendo textos para seu blog de política. Era início de 2010, e ele defendia com unhas e dentes sua candidata presidencial, Dilma Rousseff (PT), aposta do então presidente Lula.

O "companheiro Armando", como era chamado por outros blogueiros, se descrevia no Orkut como "um cidadão brasileiro indignado com a ação criminosa dos tucanos" na campanha eleitoral. Era casado, tinha 56 anos e vivia em Poços de Caldas, Minas Gerais.

Seu blog chamava-se "Seja Dita Verdade" e dizia divulgar "a notícia transparente". "Nestas eleições surgiram, quase que 'por mágica', os mais variados e-mails falsos que caluniam Dilma Rousseff. Venho aqui neste blog, sempre que possível, desmentindo um por um", escreveu em uma de suas postagens.

Esse "Armando", no entanto, nunca existiu. Seu blog e seus perfis no Orkut e no Twitter eram administrados por quatro pessoas que teriam recebido, para tanto, de R$ 3,5 mil a R$ 4 mil mensais entre maio e outubro de 2010. A BBC Brasil entrevistou sob a condição de anonimato três dessas quatro pessoas, que dizem ter sido recrutadas sem contrato formal por uma empresa de marketing político baseada em São Paulo para levar isso a cabo.

Seu trabalho, segundo relatam, era alimentar o blog com postagens desmentindo supostos boatos sobre Dilma Rousseff e publicar textos parciais e contrários a seu principal adversário, José Serra (PSDB), que acabou derrotado no segundo turno. A página também chegou a ter notícias falsas. E, para disseminar seu conteúdo, o trabalho acabou envolvendo a criação de perfis falsos - ao menos 131 deles no Twitter, segundo uma lista à qual a BBC Brasil teve acesso.

Parte desses perfis, 84, ainda estão "vivos" na rede social, embora inativos, e podem ser conferidos por qualquer um.


Se você não consegue ver a lista, clique aqui


São usuários como "Juliana Miranda" ou "jujummiranda", que escrevia tuítes sobre o curso de Psicologia ("Freud é uma das minhas paixões") entremeados com outros em apoio a Dilma ("os capixababas querem Dilma, deu pra sentir hoje nas ruas"), além de retuitar a página "Seja Dita Verdade". Sua foto pertence, na realidade, a uma blogueira finlandesa.

A empresa apontada pelos entrevistados como responsável pelo serviço é a Ahead Marketing, de Gabriel Arantes Cecílio e, na época, também de Arnaldo Lincoln de Azevedo. Em seu site, é descrita como uma agência que adaptou o "marketing de guerrilha" para a realidade política. Oferece serviços como o de "invisible talkers" (comunicadores invisíveis), "grupo de agentes treinados que inserem mensagens em pontos estratégicos da cidade, por meio de diálogos entre eles mesmos ou com a população".

Questionados por e-mail, os dois negaram ter participado na "produção de notícias falsas", mas não responderam à pergunta sobre a produção de perfis falsos. Além disso, disseram não poder comentar se foram contratados para atuar na campanha de Dilma Rousseff em 2010 porque não falam sobre "clientes ou supostos clientes" (leia mais abaixo).

O site da agência informa que ela participou "dentro e fora do Brasil" de "campanhas vitoriosas para a Presidência da República, governos estaduais e de grandes capitais", sem especificar quais.

Não há na prestação de contas da campanha de 2010 de Dilma e do PT registros de pagamentos à Ahead Marketing. Há um pagamento de R$ 234 mil, no entanto, da campanha do aliado e hoje governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), a "G. Cecílio e Cia Ltda", de Gabriel Cecílio Arantes.

Pimentel concorreu ao Senado em 2010 e, no início daquele ano, foi um dos coordenadores da campanha de Dilma à Presidência. Ele também aparece nos tuítes de alguns dos perfis falsos, que publicaram mensagens favoráveis não só ao então candidato, como também a postulantes do PT aos governos estaduais.

"Ana Gabriela" (ou @aninha_gaby no Twitter) é um exemplo: "Antes que eu me esqueça, #voudepimentel", escreve em 20 de setembro de 2010. A "usuária" também tuitava a favor de Dilma: "Programa de Dilma mostra a história de vida de uma mulher vitoriosa", escrevera um mês antes.

"A gente especulava, sabia que podia acontecer, e agora a descoberta de que isso aconteceu já em 2010 gera mais um mega-alerta para as eleições de 2018", diz à BBC Brasil Fabricio Benevenuto, professor do departamento de Ciência e Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), demonstrando preocupação com a "tentativa de manipulação de opinião pública através do uso de perfis falsos" neste ano.

Para Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, a descoberta "mostra que o Brasil tem pelo menos oito anos de 'know-how' de como fazer fakes de maneira sofisticada como estratégia organizada de campanhas políticas". "Parece pioneirismo brasileiro. Um primeiro ensaio, um embrião de como fazer essa influência que deve ter aumentado nos ciclos posteriores."

Por meio de sua assessoria de imprensa, Dilma negou que tenha contratado tal serviço. "A ex-presidenta Dilma Rousseff, em nenhuma de suas campanhas, em 2010 e 2014, contratou ou autorizou que fosse contratado quaisquer serviços relativos a perfis e notícias falsos. Desconhece quaisquer das empresas ou pessoas que agem nessa área. Tampouco tem conhecimento ou autorizou qualquer atuação, iniciativa ou ação nesse sentido de integrante de suas campanhas", afirmou, em nota.

Respondendo sobre a campanha de Pimentel, o diretório do PT de Minas disse não ter "conhecimento sobre a contratação de qualquer empresa com a finalidade de criação e manutenção de perfis falsos no Twitter, em qualquer campanha eleitoral. Esclarece, ainda, que esta não é uma prática do partido."

Perfis falsos foram comprovadamente usados para tentar influenciar as eleições americanas em 2016. O expediente, ao lado da propagação de notícias falsas, também preocupa especialistas e autoridades brasileiras, que temem seu uso nas eleições de 2018. Em dezembro passado, a BBC Brasil revelou que a profissionalização do serviço no Brasil já existia ao menos desde 2014, em escala maior do que esta que teria acontecido em 2010: uma empresa, baseada no Rio, teria remunerado cerca de 40 funcionários espalhados pelo Brasil para criar e alimentar milhares de perfis falsos no Twitter e no Facebook.

Depoimentos dos entrevistados pela BBC Brasil e tuítes mostram que campanhas de políticos como Aécio Neves (PSDB-MG), então candidato à Presidência, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), e o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) teriam contratado o serviço. Eles negam. Leia mais em: Exclusivo: investigação revela exército de perfis falsos usados para influenciar eleições no Brasil

Rotina e publicações

Os quatro ex-funcionários chegavam para trabalhar todos os dias por volta das 10h em um apartamento em Higienópolis, bairro nobre na zona central de São Paulo, segundo relatam os entrevistados pela BBC Brasil. Começavam o dia fazendo uma espécie de "reunião de pauta" depois de ler os jornais do dia, em que decidiam quais postagens seriam produzidas para o blog, sempre com os assuntos do momento e a partir de laptops fornecidos pelos donos da empresa, contam.

Também trabalhavam ali um diagramador e, ocasionalmente, uma pessoa de tecnologia da informação, afirmam os entrevistados.

As postagens variavam principalmente entre notícias que atacavam Serra e textos que desmentiam boatos sobre Dilma que, na época, circulavam em outros blogs, grupos de Orkut e correntes de email. O blog tinha as categorias: "(Des)governo do PSDB", "Desmentindo boatos", "Partido da Imprensa Golpista" e "PSDB: Mancadas da campanha", entre outros.

Um exemplo de publicação que visava desmentir textos falsos sobre Dilma é uma que explica que o presidente Michel Temer (PMDB), vice na chapa, não era satanista. "Michel Temer sempre foi ligado ao catolicismo desde a infância. Portanto, a afirmação que Temer é satanista é FALSA", dizia o texto publicado no blog.

Esta postagem que fazia uma compilação de links de "desmentidos de e-mails falsos sobre Dilma" foi bastante disseminada - recebeu 70 comentários no blog. Um desses textos de checagem de informações mostra como são falsos emails sobre "uma amante lésbica" da então candidata, que estaria lhe pedindo pensão na Justiça. O material ensina o leitor como pesquisar no site da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o nome do advogado da suposta amante citado no email, verificando, assim, que ele não existe. "Todos os emails falsos são lamentáveis, mas este tem uma canalhice especial. Trabalha com a homofobia (...) E se Dilma Rousseff fosse lésbica, qual seria o problema?", diz.

Embora a maior parte das publicações fosse de ataques a Serra ou de checagem de fatos sobre Dilma, os entrevistados pela BBC Brasil admitem que chegaram a produzir também notícias falsas. Uma publicação do dia 6 de outubro de 2010, por exemplo, informa que o Vaticano estava discutindo "excomungar José Serra".

"Vestígios de conversas secretas dentro do Vaticano, um dos lugares mais misteriosos do planeta, já começam a chegar em terras brasileiras. De início, um pequeno comentário aqui, uma colocação ali, nada de nomes. Quem estava mais atento logo começou a construir, com pequenos fragmentos, a história do que acontecia na terra do Papa: um alto político brasileiro estava para ser excomungado. Agora a notícia já vazou por completo, já não é segredo para ninguém, trata-se de José Serra, presidenciável do PSDB."

Autor dessa notícia, um dos entrevistados sob a condição de anonimato pela BBC Brasil afirma que "acabou" produzindo esse texto porque as notícias falsas no blog "foram aumentando num crescente". "Acabaram saindo essas coisas", diz, apontando uma das técnicas para criar uma notícia falsa: "tem sempre um lado que é verdade e outro que não pode ser apurado por ninguém - como de pessoas 'falando secretamente no Vaticano'. Como alguém apuraria isso?".

Em dias de debate eleitoral, contam os entrevistados, eles chegavam para trabalhar mais tarde e saíam também mais tarde, por volta das 2h ou 3h, porque ficavam produzindo postagens sobre o debate para o blog. Por ser mais trabalhoso, eles faziam um sorteio para decidir quem seria a pessoa responsável pelo perfil de "Armando Santiago Jr." durante a discussão entre os candidatos.

"Debate era final de Copa do Mundo, era dia que a gente ia dormir às 3h. O debate acabava umas 22h. Enquanto um estava fazendo o Armando Santiago Jr., outro ficava escrevendo texto para o blog e outro estava replicando as mensagens nos perfis do Twitter. Era um trabalho muito estressante", diz um entrevistado.

Ser o "Armando Santiago Jr." no dia a dia "era um trabalho muito pesado porque tinha que disseminar informações positivas, contra-argumentar as negativas, tomando porrada de todos os lados", afirma.

Os ex-funcionários também contam que faziam plantões de casa aos fins de semana uma vez por mês. O plantonista tinha que ir cedo comprar as revistas semanais para então escrever um texto que supostamente desmentiria uma capa de revista com uma reportagem que pudesse ser negativa para Dilma, por exemplo.

Eles dizem ter recebido celulares pré-pagos para se comunicar com os donos da empresa. E, ao criar perfis falsos, usavam um programa que escondia o endereço IP das máquinas - ou seja, buscavam evitar deixar registros de suas atividades na internet.

'Ectos'

"Maria de Lourdes Coelho", de 62 anos, é uma dona de casa e avó em Santarém (PA). "Casada. Gosta de política. O filho é funcionário público na cidade, é preocupada com o futuro dos netos. Seu estilo: mãezona. É a voz das mulheres em favor de Dilma", diz sua descrição na planilha que sistematiza os perfis falsos à qual a BBC Brasil teve acesso.

Mais que perfis falsos, aliás: quando começaram a criá-los, contam os entrevistados, os coordenadores criaram um código para referir-se a eles. Eram os "ectos", em referência a "ectoplasmas", ou fantasmas.

A planilha à qual a BBC Brasil teve acesso mostra os "ectos" no Twitter, suas histórias criadas pelos ex-funcionários e, em alguns casos, email e senha para acessá-los. Parte dos perfis foi desativada ou suspensa pelo Twitter. Alguns nomes foram adotados por usuários reais depois que os falsos foram desativados. E outros tuitaram também em 2012, o que indica que podem ter sido reciclados. Os entrevistados pela reportagem, porém, dizem ter trabalhando alimentando as contas apenas em 2010.

Na reta final da campanha, cada funcionário focou na manutenção de cerca de 20 "ectos" mais desenvolvidos, além do perfil de "Armando". Não havia automação ou uso de robôs - as quatro pessoas designadas para manter os perfis dizem ter feito tudo manualmente. Elas afirmam que nunca tinham ouvido falar na criação profissional de perfis falsos e que iam aprendendo enquanto faziam. De certa forma, sentiam-se pioneiras disso no Brasil, embora achassem que a oposição também lançava mão da estratégia. Contam que tinham autonomia para criar narrativas e "personalidades" para cada um dos fakes.

Os "ectos" eram personagens como "Mariza Villela", descrita na planilha dos ex-funcionários como uma microempresária que "montou seu próprio negócio por conta das melhoras do país no Gov. Lula". Ou então "Ricardo Ribeiro", um "farmacêutico formado que não tinha perspectiva de fazer um faculdade até o ProUni ser implantado" - o ProUni (Programa Universidade para Todos) é um programa federal criado por Lula para dar bolsas de estudo em cursos de graduação em instituições privadas. Havia também a "garota do povo, agitadora da rede" (Karlla Kristina), a "esquerdista light" (Luciana Andrade), o "militante soft" (Felipe Gomes), a "politizada e culta" (Ana Paula Ramos) etc.

Os coordenadores exigiam que os usuários falsos tivessem perfis demográficos variados, com classe, profissões, origem e estilo distintos e plurais, de acordo com os relatos dos entrevistados. O objetivo seria manter uma ampla gama de perfis que apoiassem Dilma, com o objetivo de interagir com diferentes comunidades de forma atrativa para elas.

"Também havia muitos perfis com cara de 'ongueiro', zen, gente que anda de bicicleta, justamente para cativar o eleitor da Marina", conta um entrevistado, citando Marina Silva (então no PV, hoje Rede), candidata que ficou com o terceiro lugar em 2010. Ele cita o perfil "@kaiowa_rt", o "Marcos Kaiowá", por exemplo, criado para representar o apoio de comunidades indígenas à candidata petista.

A maior parte dos "ectos" eram mulheres com fotos consideradas atraentes com o propósito de atrair homens e aumentar, assim, o número de seguidores. "Ana Gabriela", a usuária que tuitava a favor de Dilma e Pimentel, perguntava pelos "homens da Twittosfera" e procurava os que eram "politizados".

Além disso, com o objetivo de representar eleitores de Dilma de todo o Brasil, os ex-funcionários criaram dois ou três perfis falsos de cada Estado. Ao fazer isso e alimentar seus perfis com publicações sobre seu dia a dia, no entanto, acabavam caindo em clichês regionais, de forma pouco natural - eles próprios admitem. "Acabava a criatividade e nem sempre tínhamos tanto repertório", diz um.

"Feriadinho tranquilo, chimas e twitter", escreve "Cristina Moreira", usuária falsa que seria de Porto Alegre, usando "chimas" para se referir a "chimarrão". "Dia tá cansativo, mas tá tri!!!", diz, em outra ocasião. O "ecto" paulistano usa "meu" para tuitar, enquanto o de Goiânia escreve a respeito de música sertaneja. Já as usuárias falsas da Bahia se referem ao Estado como "Baêa" e a suas mães, como "mainha".

Alguns perfis foram criados só para seguir e monitorar usuários ligados à campanha adversária, segundo os entrevistados. O "ecto" "Dudu Graneff" escrevia ironicamente sobre o PSDB e a imprensa com um nome que fazia referência ao cientista político Eduardo Graeff, ex-secretário-geral da Presidência nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Essa conta foi desativada, mas seus rastros ainda podem ser encontrados no Twitter por meio de retuítes e interações antigos.

Outro, "Zé Chirico", ainda "vivo" no Twitter, com 914 seguidores, mas sem tuitar desde agosto de 2010, era uma sátira de Serra. "Ex-governador de São Paulo. Faço de tudo para ser presidente da República", diz sua descrição.

Os perfis também faziam muitas críticas a veículos de imprensa tradicionais, com constantes acusações a revistas e jornais.

Todas as contas foram criadas entre maio e agosto de 2010, e a maioria encerrou a publicação de tuítes em outubro daquele ano, quando ocorreram as eleições.

A BBC Brasil levantou os dias e horários de criação de cada um dos perfis. O resultado mostra que, muitas vezes, os usuários surgiram com minutos de diferença: @plinplao, o "Plínio Paulo", foi criado no dia 25 de julho de 2010 às 13:59. Vinte e cinco minutos depois, nasce o @aposentado_z, "José Carlos", por exemplo. O padrão se repete entre todos os outros perfis falsos.

Perfis e fotos

Fotos para os perfis falsos eram retiradas de diversos cantos da internet: de páginas de fora do Brasil, principalmente, e de blogs com fotos "para fakes", ou seja, feitos justamente para isso. "Pegávamos fotos de um pessoal turco, às vezes africano, para se parecer mais com o brasileiro", relatou um ex-funcionário. Outro diz que procurava imagens em sites de paquera.

"Cristina Morais" é uma mulher gaúcha moradora do Recife que tuitava a favor de Dilma. Na planilha com os fakes, ela é descrita como "professora de literatura, 25 anos, estudante de jornalismo. Contra o PIG (Partido da Imprensa Golpista)". "Até Aécio vota em Dilma!", escreve, intercalando tuítes em que diz estar com sono ou planejando seu feriado na cidade com outros sobre política. Também retuita os textos do "Seja Dita Verdade".

Mas o rosto de "Cristina Morais" pertence à engenheira carioca Liana Soares, de 36 anos, que mora na Suíça. Sua foto foi retirada de um blog que ela mantém sobre viagens. Para a dona da imagem, é "uma falta de escrúpulos tremenda usarem fotos de pessoas normais em contas fakes". "Seja lá qual for o objetivo. Se for para manipular a opinião pública, pior ainda", diz.

Outro perfil falso é o de "Paloma Axel", "Mineirinha de Sete Lagoas agora em BH".

Para criar "reputação" e legitimar-se como verdadeiro, além de tuitar sobre o Atlético Mineiro, o perfil de "Paloma" interage com outro perfil falso: o de "Mafredo Coutinho", controlado pelo mesmo funcionário, segundo a planilha à qual a BBC Brasil teve acesso. "@Manfredinho, lembro que eu te zuava falando que era nome do meu avô. Vc continua gordinho nerd?", escreve. E depois: "Nossa o @seumanfredo está aqui em casa. Mas que papo chato!!!".

Outra forma de parecer mais "real": narra uma viagem a São Paulo para assistir ao show do Bon Jovi. "Valeu gente, vou pra São Paulooooooooooooooo amanhã tem Bon Jovi!!! BJOS Dilmistas", escreve no dia 5 de outubro de 2010.

Em setembro, divulgou o site do então candidato a senador Fernando Pimentel (PT). Depois, recomendou o blog Seja Dita Verdade: "Muito importante essa página onde estão desmascaradas todas as mentiras sobre Dilma difundida por e-mails terroristas. Vamos difundir". E, no dia 25 de outubro de 2010, tuitou durante e sobre o debate transmitido pela TV Record entre Dilma e Serra, que disputavam o segundo turno.

Mas a foto usada em seu perfil pertence, na realidade, à escritora argentina Pola Oloixarac.

No Orkut, segundo dizem os entrevistados, também faziam álbuns de fotos para parecerem ainda mais verdadeiros. "Como fazia álbuns de gente que não existe? Pega um monte de foto aleatória e escreve 'família querida', 'dia com meus filhos' e vai lá e tranca o álbum e deixa só para você ver. As pessoas vão ver que tem um álbum lá, mas não vão conseguir acessar."

'Seja Dita Verdade'

Embora o blog e o perfil no Twitter do Seja Dita Verdade não estejam mais ativos, é possível encontrar alguns vestígios seus na internet.

A começar pelos retuítes de outros perfis, quando se coloca um "RT" em frente à mensagem original e seu autor. Um retuíte de maio de 2010 mostra que o @sejaditaverdade havia escrito: "RT @Sejaditaverdade: Serra tem nojo de povo e não consegue esconder".

O blog foi desativado, mas há capturas de tela da página feitas entre 2010 e 2014 e arquivadas no site https://web.archive.org, uma espécie de biblioteca digital que mantém capturas de tela congeladas no dia em que foram salvas. Sua descrição de 2014, por exemplo, diz: "Aqui damos a notícia transparente, como ela é. Por que às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data".

Foi citado pela coluna "Painel" da Folha de S.Paulo em agosto daquele ano: "O site 'Seja Dita Verdade', que apoia Dilma, divulgou ontem um vídeo que compara falas de Marina em 2014 a um discurso de Fernando Collor em 1989. Os dois aparecem prometendo 'o novo' na política", diz o texto.

A página já não existe no Facebook, mas é possível encontrar compartilhamentos antigos de suas publicações, com argumentos contra o voto em Aécio Neves (PSDB), candidato presidencial em 2014, e Geraldo Alckmin (PSDB), candidato ao governo de São Paulo, o que mostra que ela estava ativa ao menos até 2014.

Os entrevistados pela BBC Brasil dizem ter atuado na manutenção do blog apenas até 2010.

Relatório

Em 2010, o ambiente digital era outro, e blogs, Twitter e Orkut tinham a relevância que hoje o WhatsApp e o Facebook têm. Em agosto de 2010, segundo dados da consultoria comScore, o Orkut era a maior rede social do Brasil, com 29 milhões de usuários únicos. Facebook e Twitter cresciam, com cerca de 9 milhões cada.

Segundo Marcelo Coutinho, coordenador de mestrado em administração da FGV (Fundação Getulio Vargas) que fez pesquisas sobre o uso das redes sociais nas eleições brasileiras em 2006 e 2010, a internet já chegava a 50% do eleitorado brasileiro naquela época. "E, entre os eleitores internautas, a internet era a principal fonte de informação sobre as eleições, seguida pela televisão", observa.

Não se falava em "fake news", mas em "boataria" espalhada em correntes de emails e blogs. Estes tinham surgido como atores políticos nas eleições de 2006 e, em 2010, "viviam seu auge", segundo Pollyana Ferrari, professora da PUC-SP e pesquisadora de mídias sociais.

Os chamados blogs "progressistas" confrontavam o que era divulgado pela grande mídia - um exemplo foi a disputa da narrativa sobre o objeto que teria atingido Serra na cabeça durante um comício, apontado como uma bolinha de papel. Na época, também houve boatos dos dois lados sobre a suposta defesa do aborto por parte de Dilma e Serra.

Uma apresentação de PowerPoint à qual a BBC Brasil teve acesso, supostamente feita pela empresa para informar o PT sobre a evolução do trabalho de penetração do "Seja Dita Verdade" e da criação de perfis falsos, dizia que o perfil do blog no Twitter tinha quase 2 mil seguidores, com uma média de 13 retuítes por publicação.

Comunidades do Orkut ainda eram o ambiente de discussões online. "Armando" participava de 41 delas divulgando as postagens do blog e participando de debates, segundo a apresentação de PowerPoint. A rede social, onde havia outros perfis falsos, segundo os entrevistados, foi extinta em 2014, mas a BBC Brasil teve acesso a uma captura de tela do perfil de "Armando".

Segundo a apresentação de PowerPoint, o blog "Seja Dita Verdade" tinha uma média de mais de 100 visitas diárias em julho de 2010.

Já no Facebook, ainda de acordo com essa apresentação, o perfil "Seja Dita Verdade" tinha 148 amigos em julho daquele ano.

A rede construída pela agência também tinha uma newsletter chamada "Abrindo bico", "um informativo com pequenas notas atacando o PSDB", segundo a apresentação, com uma base de 186 mil emails.

Outra forma de penetração era a criação de vídeos, também produzidos pelos funcionários. Quinze ainda estão disponíveis no Youtube na conta "sejadverdade". O mais visto, com 114 mil visualizações, tenta desbancar argumentos da campanha de Serra para elegê-lo presidente.

'Ponte com PT'

Uma terceira pessoa teria coordenado o trabalho de criação e manutenção do blog e dos perfis falsos, segundo os ex-funcionários: o publicitário Ruy Nogueira Netto, que não é ligado à Ahead, mas, de acordo com os contratados, era a ponte com o PT. Foi em seu apartamento em Higienópolis, segundo os entrevistados pela BBC Brasil, em que trabalharam criando os perfis falsos.

Por email, Nogueira Netto negou que tenha participado do esquema. "Não poderia trabalhar na campanha de alguém por quem não sinto o menor apreço pessoal, de forma pública e reconhecida."

Ele afirmou, no entanto, que, em sua "antiga residência, em Higienópolis, a pedido de meu saudoso amigo Marco Aurélio Garcia, alguns militantes da campanha de Dilma Rousseff se reuniam eventualmente para avaliar o cenário da internet. O foco era o clima de terror semeado pela campanha de José Serra na web". Questionado sobre o que faziam essas pessoas que frequentavam sua casa, ele respondeu não ter "conhecimento maior de como atuavam".

Marco Aurélio Garcia (1941-2017) foi um dos coordenadores do programa de governo da campanha de Dilma à Presidência, além de ocupar também, na época, o cargo de assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência de Lula.

Nogueira Netto disse que conhece "faz anos" Arantes Cecílio e Lincoln de Azevedo, que considera serem "publicitários sérios e competentes". Os dois dizem que são amigos de Nogueira Netto e que frequentam sua casa.

A empresa responsável oficialmente pela parte digital da campanha de Dilma em 2010 era a agência Pepper Interativa, de Danielle Fonteles. Os entrevistados pela BBC Brasil afirmam que Fonteles visitou o apartamento onde trabalhavam e estava ciente do uso de perfis falsos que estariam sendo usados pela campanha, tendo até pedido a senha e o acesso aos usuários.

Questionado sobre sua relação com Fonteles, Nogueira Netto respondeu, por email: "Fomos apresentados em 2010 e jamais mantivemos relações profissionais ou pessoais". Procurado durante três dias pela reportagem, o advogado que representa Fonteles, Cleber Lopes de Oliveira, disse que não conseguiu falar com sua cliente porque ela estava fora do Brasil. Tampouco enviou à reportagem um contato seu.

O pagamento, segundo o relato dos entrevistados, era feito todo mês no apartamento de Ruy Nogueira Netto. Eles eram chamados individualmente a seu escritório e recebiam o salário em dinheiro vivo de Arantes Cecílio, Lincoln de Azevedo ou Ruy Nogueira Netto, dizem. Os três negam a informação.

A BBC Brasil teve acesso a emails trocados entre os ex-funcionários e Gabriel Arantes Cecílio, Arnaldo Lincoln de Azevedo e Ruy Nogueira Netto. Nas mensagens, de 2011, falam sobre um "processo de trabalho" em que eles e os entrevistados participaram juntos no ano anterior e citam "laços" que os unem.

Criar perfis falsos é um crime no Brasil quando feito para obter vantagens ou causar dano a outras pessoas. Além disso, a legislação eleitoral aprovada no ano passado proíbe "a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral" por meio de usuários falsos na internet. Mas essa regra não existia em 2010. A disseminação de notícias falsas, por sua vez, não é ilegal agora nem era na época, mas seu autor pode ser punido se cometer calúnia, difamação ou injúria contra alguém.

"Na época, achava que o que fazíamos era muito importante, que o blog tinha também a função de fiscalizar o mau jornalismo. Hoje eu penso de outro jeito", diz um dos entrevistados pela BBC Brasil. A criação de perfis falsos, conta outro, veio de forma natural, como forma de divulgar o blog, sem muita reflexão. "Eu mal consigo explicar o que eu fiz em 2010. Isso não é jornalismo, é completamente outra coisa. E pode ser algo muito perigoso."

O que dizem os citados na reportagem

Dilma Rousseff (PT), ex-presidente

"A ex-presidenta Dilma Rousseff, em nenhuma de suas campanhas em 2010 e 2014, contratou ou autorizou que fosse contratado quaisquer serviços relativos a perfis e notícias falsos. Desconhece quaisquer das empresas ou pessoas que agem nessa área. Tampouco tem conhecimento ou autorizou qualquer atuação, iniciativa ou ação nesse sentido de integrante de suas campanhas."

Diretório Estadual do PT de Minas Gerais (em resposta sobre a campanha de Fernando Pimentel ao Senado em 2010)

"O Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores de Minas Gerais não tem conhecimento sobre a contratação de qualquer empresa com a finalidade de criação e manutenção de perfis falsos no Twitter, em qualquer campanha eleitoral. Esclarece, ainda, que esta não é uma prática do partido."

Gabriel Arantes Cecílio, sócio da Ahead Marketing

"A Ahead não tem ligação especial com nenhum partido político. São todos potenciais clientes de uma das áreas que atendemos. A postura da empresa - e também a minha - sempre foi a de respeitar e preservar as situações particulares de empresas, partidos ou pessoas que nos relacionamos. Por conta disso a empresa não trata sobre clientes ou supostos clientes. No caso da empresa temos isso também por força de contrato, no pessoal por crença de conduta. Devo, contudo, te afirmar, com ênfase, que as afirmações sobre formas pagamentos não correspondem à realidade. Também não é verdade que estivemos envolvidos na produção de notícias falsas, como foi apontado. Pelo contrário, sempre baseamos nosso trabalho na premissa de que é possível oferecer um modelo em que qualquer pessoas possa compreender os fatos reais de seu cotidiano da mesma forma com que ela normalmente se comunica. Sobre a ligação com Ruy Nogueira, esclareço que o conheci há mais de uma década ao atender um cliente em comum. Desde então mantemos uma relação de amizade e já estive diversas vezes em sua casa. (...) Conheço as demais pessoas citadas (governador Fernando Pimentel (PT), Danielle Fonteles, da agência Pepper, e o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares), mas não mantenho nenhuma relação especial com qualquer delas."

Arnaldo Lincoln de Azevedo, sócio da Ahead Marketing em 2010

"Eu sou um profissional do mercado com mais de 13 anos no mercado publicitário. Já trabalhei na McCann, Ogilvy, Ahead e atualmente estou na Benjamim. Em todas estas empresas meu posicionamento foi o mesmo: por uma questão de conduta profissional e pessoal não comento sobre clientes, supostos clientes, trabalhos ou supostos trabalhos. Esclareço, com destaque, que as informações sobre pagamentos não correspondem à realidade. Também é inverídica a informação sobre suposto envolvimento na produção de notícias falsas, como foi apontado. Conheci Ruy Nogueira em uma circunstância profissional há alguns anos. Temos uma relação de amizade e já o visitei algumas vezes em sua casa."

Ruy Nogueira Netto, publicitário

"Em minha antiga residência, em Higienópolis, a pedido de meu saudoso amigo Marco Aurélio Garcia, alguns militantes da campanha de Dilma Rousseff se reuniam eventualmente para avaliar o cenário da internet. O foco era o clima de terror semeado pela campanha de José Serra na web." Questionado sobre o que faziam, respondeu: "Não tenho conhecimento maior de como atuavam". Afirmou que Gabriel Arantes Cecílio e Arnaldo Lincoln de Azevedo são "publicitários sérios e competentes, aos quais conheço faz anos". Sobre a produção de posts para o blog "Seja Dita Verdade" e a criação de perfis falsos, respondeu: "Esclareço: a campanha de Dilma Rousseff foi feita pelas empresas do gaúcho Marcelo Branco e a brasiliense Pepper". Afirmou também: "Não poderia trabalhar na campanha de alguém por quem não sinto o menor apreço pessoal, de forma pública e reconhecida". Disse que o pagamento em dinheiro vivo em seu apartamento a pessoas em 2010 é uma "informação inverídica", assim como a alegação de que teriam recebido computadores e celulares para fazer o trabalho. Afirmou, sobre Danielle Fonteles, da Agência Pepper: "Fomos apresentados em 2010 e jamais mantivemos relações profissionais ou pessoais". Questionado sobre sua relação com Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, e com o advogado e ex-deputado petista Luiz Eduardo Greenhalg, disse que Delúbio é seu "velho conhecido" e que Greenhalgh é seu "amigo pessoal de décadas". Negou ser responsável por um perfil satírico feito em 2010 contra o cientista político Eduardo Graeff, ex-secretário-geral da Presidência nos governos de Fernando Henrique Cardoso, que o processou (e perdeu o processo) anos antes por ter sido criticado por Nogueira Netto em um blog em 2004: "Depois de derrotá-lo na Justiça, jamais ocupei-me de sua figura".

Danielle Fonteles

Seu advogado, Cleber Lopes de Oliveira, informou que ela estava fora do país e que não conseguiu falar com ela.

Twitter

"Falsa identidade é uma violação das Regras do Twitter. Quando recebemos uma denúncia, tomamos as medidas cabíveis de acordo com a nossa Política para Falsa Identidade, incluindo a suspensão da conta do Twitter"

Facebook

"Nossas políticas não permitem contas falsas. Contamos com nossa comunidade para denunciar perfis falsos para que nossos times possam revisar e remover tais contas e todo o conteúdo relacionado a elas. Além disso, estamos o tempo todo aperfeiçoando nossos sistemas para melhor identificar e remover contas falsas a partir de padrões de comportamento"

Google (Orkut)

A empresa não quis responder.