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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dalmo Dallari e os direitos indígenas na Constituição

30 mar. 2006 - Jurista Dalmo Dallari, ex-professor da USP (Universidade de São Paulo) - Clayton de Souza/Estadão Conteúdo/AE
30 mar. 2006 - Jurista Dalmo Dallari, ex-professor da USP (Universidade de São Paulo) Imagem: Clayton de Souza/Estadão Conteúdo/AE

14/04/2022 15h56

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Por Manuela Carneiro da Cunha

Dois artigos na Constituição Federal de 1988 são decisivos para os direitos indígenas. Ambos foram de inspiração de Dalmo Dallari. Ele nos deixou no dia 6 de abril, quando oito mil indígenas estavam justamente reunidos em Brasília para defender a letra desses dois artigos.

O artigo 231 reconhece que os direitos dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam são originários: isso significa que os direitos são anteriores a qualquer lei. Eles, portanto, não são "concedidos" pela Constituição, mas "reconhecidos" por essa lei máxima. Isso foi o que nos explicou Dalmo, que na ocasião nos deu um exemplo exótico: os cantões suíços guardaram seus direitos anteriores, originários ao se unirem para formar o Estado suíço.

A União, continua o artigo 231, tem o dever de proteger essas terras e, para tanto, demarcá-las. O governo Bolsonaro procura inverter os termos e fazer crer que os direitos dos índios às suas terras dependem da conclusão do (longo) processo de demarcação. Não dependem. O Supremo já se pronunciou clara e reiteradamente sobre isso. Mas essa aberração tem justificado um aumento inédito da grilagem de terras indígenas e a tentativa da atual Fundação Nacional do Índio (Funai) de se eximir de seus deveres.

O artigo 232 também foi formulado por Dalmo. Foi fruto de experiência em acompanhar conflitos e prejuízos que povos indígenas tentavam ajuizar. No mais das vezes, os juízes não admitiam a capacidade dos indígenas de entrarem com ações. Alegavam que era a Funai, e não eles, que devia ingressar com a ação. Ora, era frequente que a Funai fosse justamente a autora dos prejuízos, ou, pelo menos, conectada aos autores. Não iria entrar em juízo contra si própria.

É notável que os indígenas já tinham assegurados direitos importantes. Mas o diabo está nos detalhes. De que valiam esses direitos se os indígenas não tinham acesso direto à Justiça, sob o pretexto absurdo de que eram tutelados? Ao longo da década de 1970, Dalmo já havia protestado que o Código Civil havia instituído a capacidade relativa dos índios como uma proteção negocial, mas que a tutela estava sendo, nos tribunais, interpretada contra eles. Nada mudou, porém.

Para resolver esse obstáculo, Dalmo Dallari veio com uma solução elegantíssima no artigo 232: "Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo". Esse artigo não só trouxe o auxílio do Ministério Público Federal, mas mudou da água para o vinho o acesso dos indígenas à Justiça. Ninguém o contestou na Assembleia Constituinte.

De uma só tacada, os indígenas e suas formas de organização, tanto tradicionais quanto inovadoras, tinham capacidade jurídica reconhecida, e não precisavam de nenhum CNPJ. Esse foi um dos argumentos que permitiu à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ser legitimada como autora, no Supremo Tribunal Federal, da notável ADPF 709 de 2020, que procurou defender os povos tradicionais da Covid-19.

Dalmo deixou, sem alarde, um enorme legado aos povos indígenas.

Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia.