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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As falsidades e os riscos da cartilha do Ministério da Saúde sobre aborto

Cartilha do Ministério da Saúde 2022 - Reprodução da capa
Cartilha do Ministério da Saúde 2022 Imagem: Reprodução da capa

24/06/2022 09h14

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Por meio da Nota Pública # 46, a Comissão Arns manifesta-se de forma indignada com o teor da cartilha "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento", lançada pelo Ministério da Saúde no dia 8 de junho de 2022, como um "guia para apoiar profissionais e serviços de saúde". Tal afirmação consta da introdução do documento que visa repassar "evidências científicas e estatísticas fidedignas" sobre aborto, "levando em conta a defesa das vidas materna e fetal e o respeito máximo à legislação vigente no País".

A cartilha do ministério liderado pelo médico Marcelo Queiroga, que já legou ao país sua pífia atuação no enfrentamento da Covid-19, mente não apenas ao apresentar os seus propósitos. No decorrer de 68 páginas, falsas informações vão se acumulando em total desconsideração pela vida das mulheres e, ao contrário do que diz considerar, com indisfarçável intenção de sobrepujar a legislação brasileira e a própria ciência.

Não à toa entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), a Rede Médica pelo Direito de Decidir, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), todas reconhecidas por seu trabalho no campo da saúde reprodutiva, vieram a público denunciar este manual repleto de inverdades e distorções, a ser distribuído por todo o sistema de saúde, com impacto sobre os profissionais e serviços médicos.

Dentre as falsas informações, destacam-se:

? "O aborto inseguro não é um problema de saúde pública". É falso, pois a mortalidade materna é importante parâmetro de qualidade das políticas públicas e constitui dado relevante no planejamento da saúde, sendo função do Estado evitá-la. Em 2020, foram realizados no país 155.139 procedimentos de curetagem pós-abortamento e 15.090 procedimentos de esvaziamento de útero por aspiração, ambos empregados em casos de aborto prévio inseguro.

? "Todo aborto é crime...". No Brasil, desde 1940, o aborto é legal quando a vida da mulher grávida está em risco e quando a gestação resulta de estupro. Por decisão do STF em 2012, deixa de ser crime quando o feto é portador de anencefalia. E, em 2015, por entendimento da 3ª. Turma do STF, passa a ser considerada vítima de estupro de vulnerável, portanto com direito à interrupção de gestação, toda pessoa grávida até 14 anos de idade.

? "...mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele (o aborto) deixa de ser punido". Totalmente falso, pois não há nenhuma prerrogativa legal de que o aborto só possa ser realizado mediante investigação policial ou mesmo ordem judicial. Mais ainda: não é competência policial investigar a decisão médica de preservar a vida da mãe, tampouco é competência dos profissionais de saúde ferir o princípio do sigilo profissional para denunciar vítimas de estupro à polícia.

Diante da gravidade do que isso possa representar, a Comissão Arns sente-se no dever de repudiar publicamente um documento tão perigoso, que ecoa posturas em nada ancoradas na lei e na ciência, e não por acaso o faz em período eleitoral.

Reafirmamos que, em uma sociedade laica, como a brasileira, o tema "aborto" deve ser tratado no âmbito da saúde pública, e não guiado por visões religiosas e dogmáticas, ou por interesses ocultos. Criar obstáculos para o atendimento ao aborto garantido em lei no país, criminalizá-lo, tornar o procedimento caso de polícia, de intimidação profissional e, sobretudo, de constrangimento e humilhação para a mulher, jamais deveria ser diretriz de um órgão normativo como o Ministério da Saúde.

A Comissão Arns nunca se calará diante de situações que representem retrocesso aos direitos humanos. É justamente o que significa esta cartilha do Ministério da Saúde para as meninas e mulheres em geral, mas, em particular, para pessoas pobres, não brancas e periféricas, muitas vezes vítimas de estupro dentro da própria casa, por familiares ou conhecidos, e que cotidianamente já encontram inúmeras dificuldades para acessar os seus direitos. A hipocrisia social sobre o aborto precisa ser revelada. E esta cartilha, além de denunciada, deve ser revogada e retirada de circulação sem demora.

Defenderemos o direito à vida das mulheres, com dignidade e sempre!