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OPINIÃO

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A corajosa luta das mães de filhos executados pela polícia

Capa do livro Mães em Luta, editado pela Fábrica de Cânones - Divulgação
Capa do livro Mães em Luta, editado pela Fábrica de Cânones Imagem: Divulgação

22/11/2022 09h30

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Por Paulo Sérgio Pinheiro

Durante uma abordagem na periferia, policiais param o jovem e já descem do carro com a arma engatilhada, mirando na cabeça. Em seguida, começam a humilhá-lo com palavras e, se o jovem retruca, se põem a bater.

Quando o jovem tem passagem pela polícia, a abordagem é ainda pior: "E aí, ladrão, como vai?". Com a conversa nesse tom, seguram o jovem na abordagem por quarenta minutos, uma hora.

Muitas vezes com medo, ou por problemas na documentação, o jovem acaba fugindo, e então tem início uma perseguição violenta que termina, na maioria das vezes, com o jovem derrubado no asfalto pela polícia.

Essa coreografia autoritária e ilegal se estende com a violência verbal ou física na abordagem policial das famílias e nas invasões ilegais de domicílios, nada valendo a voz dos familiares. Após seus filhos serem presos e processados, as mães e suas famílias têm suas casas vigiadas diariamente por rondas de viaturas. Policiais param a viatura em frente à casa da mãe e por ali permanecem longas horas, acendendo e apagando as lanternas.

As famílias continuam a ser maltratadas pela polícia civil na hora de retirar nas delegacias o boletim de ocorrência. Depois vão recorrer aos órgãos responsáveis, onde são tratadas com pouco caso, com alguma exceção para as defensorias públicas. Tentam acompanhar com enormes dificuldades e insucessos a investigação policial.

Os relatos feitos nos parágrafos acima são ecos das poderosas vozes das mães de filhos executados pelas polícias, reunidos no livro Mães em Luto, da editora Fábrica de Cânones, publicado pelo coletivo Mães em Luto da Zona Leste.

Nos próximos parágrafos, minha tarefa é explicar porque todo esse conjunto de práticas autoritárias se repete em São Paulo, e em todos os estados brasileiros, campeões mundiais da letalidade policial, apesar de 34 anos de vigência da Constituição democrática de 1988.

Esta Constituição confere ao Ministério Público (MP) nos estados da federação o papel de controle externo da atividade policial, no âmbito das polícias civil e militar. Ora, apesar disso, o MP tem sido omisso nessa obrigação. A ausência de controle efetivo sobre a violência policial é fator que contribui para graves violações de direitos humanos e para o elevado número de mortes em decorrência de ações policiais - 12,9% de todas as mortes violentas intencionais do país.

Os casos reunidos no livro Mães em Luta deixam evidente que, além da ausência de controle eficaz sobre as polícias, persiste uma violência racista e classista - 78,9% das vítimas são pessoas negras executadas em 2021 nas comunidades pobres e nas periferias. A polícia militar desempenha um papel de força de ocupação nas comunidades mais pobres nas periferias de metrópoles. Um regime de segregação racial prevalece contra a população negra. Os negros são permanentemente alvos do racismo na sua vida quotidiana: em relação aos brancos, recebem salários inferiores e sentenças mais pesadas pelos mesmos crimes, configurando um estado de coisas que, além de inconstitucional, é no mínimo torpe e imoral.

Os governos democráticos não conseguiram debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, esse apartheid estrutural. Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo os mais executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e os de maior número entre os reclusos nas prisões.

Além da falta de controle das polícias, seja pelo MP, seja por organismos independentes, há uma ausência generalizada de responsabilização dos culpados pelas execuções e das autoridades superiores, com violações às garantias judiciais. O sistema de Justiça segue um padrão pelo qual os réus não são reconhecidos como sujeitos de direito. Depoimentos falsos de policiais são tomados por juízes como verdadeiros. A falta de confiança diante do enorme número de absolvições de policiais militares, assim como os frequentes arquivamentos de processos, sem que as mães sejam informadas, no seu conjunto, demonstram que "para a periferia não existe justiça".

Desde 2018, todos os dias o governo de extrema direita desrespeitou os direitos humanos. Tratou ativistas de direitos humanos, negros, mulheres, indígenas como inimigos, exaltando a violência e o arbítrio. No dia 30 de outubro, o povo brasileiro elegeu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apontando para uma possibilidade de reconstrução da democracia. Abre-se um momento excepcional para as Mães em Luta e para todas as organizações que as apoiam reivindicarem do futuro governo medidas urgentes para acabar com a letalidade e o racismo nas ações policiais.

Entre essas recomendações, cumpre instar o Estado brasileiro a:

  • Cumprir as obrigações com as quais o Brasil se comprometeu em relação aos direitos humanos e a decisões judiciais nacionais e internacionais;
  • Incrementar o controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público, bem como instar seu órgão de controle externo, o Conselho Nacional do Ministério Público, a acompanhar as investigações de graves violações de direitos humanos;
  • Processar e reprimir manifestações e declarações de autoridades brasileiras hostis aos direitos humanos, que incentivam a atuação violenta e ilegal das polícias;
  • Reforçar as defensorias públicas em termos de pessoal e de financiamento;
  • Promover atendimento psicológico diferenciado às mães que perderam seus filhos executados pelos agentes públicos;
  • Implementar processos de educação em direitos humanos em toda a etapa de educação formal, especialmente para as carreiras jurídicas, visando valorizar a voz das vítimas da violência estatal com participação das mães e familiares.

Para que esses objetivos sejam atingidos, é indispensável que toda a comunidade de defensores e entidades de direitos humanos em São Paulo aprofunde solidariedade plena na ação e na corajosíssima luta das mães. É hora de fortalecer as Mães em Luto da Zona Leste no caminho comum de defesa da vida e da justiça social.

Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.