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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro mente sobre voto em PEC do Trabalho Escravo para agradar base

Colunista do UOL

13/11/2020 04h08

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Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou, em live, na noite desta quinta (12), que, enquanto deputado federal, votou contra o confisco de propriedades rurais e urbanas de quem utilizou trabalho escravo. Contudo, os registros da Câmara dos Deputados mostram que ele votou a favor da proposta no primeiro turno, em 2004, e estava ausente no segundo, em 2012. Com isso, agradou sua base.

"No primeiro turno, foi quase unanimidade a aprovação [da emenda]. No segundo turno, o pessoal se tocou um pouco da realidade do que era essa PEC [proposta de emenda constitucional] aqui e, já tivemos, não sei quanto, mas fui uma das pessoas que votou contra ela", disse. A emenda alterou o artigo 243 da Constituição Federal, que já previa o confisco em caso de cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, acrescentando o trabalho escravo.

Bolsonaro votou a favor da matéria no primeiro turno em 11 de agosto de 2004. Ela corria na Câmara sob a numeração de PEC 438/2001. Naquele dia, todos os partidos e bancadas recomendaram a aprovação da emenda e 326 deputados votaram a favor. Mesmo com a orientação, dez parlamentares se posicionaram contra, a maioria ruralistas, e oito se abstiveram.

A chamada PEC do Trabalho Escravo levaria oito anos para ser analisada e aprovada em segundo turno na Câmara, em 22 de maio de 2012. O presidente sugere, nesta quinta, que na segunda votação, deputados teriam entendido o teor do texto e votado contra. Na verdade, ela teve uma aceitação ainda maior: foram 360 favoráveis, 29 contrários e 25 abstenções.

E, ao contrário do que afirma, o registro de votação não indica sua presença no plenário.

O assunto surgiu quando o presidente comentava, na live, o estudo de uma proposta de confisco de terras por crimes ambientas, revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo. Ele se irritou por isso estar sendo discutido por uma área de seu governo, disse que a propriedade privada é sagrada e que isso não acontecerá enquanto for presidente. Revelou que foi questionado por produtores rurais sobre o confisco de terras. Com isso, aproveitou para criticar uma lei que ele mesmo ajudou a aprovar.

Plano de governo de Bolsonaro propôs revogar lei contra trabalho escravo

Não é a primeira vez que o presidente critica a emenda. Em outras ocasiões, ele já disse que ela cria um problema sério para a família dos proprietários que podem perder o imóvel, mas tendo demonstrado a mesma solidariedade com os trabalhadores escravizados.

Em seu programa de governo, o então candidato Jair Bolsonaro propôs revogar a emenda, que é considerada a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate à escravidão.

A promulgação da 81/2014 ocorreu após dois turnos de votação no Senado Federal e 19 anos de trâmite desde que a ideia foi apresentada pela primeira vez no Congresso. Até agora, contudo, ainda não foi regulamentada. Com isso, apesar de aprovada, não é usada.

A regulamentação é importante porque vai estabelecer qual o devido processo legal para o perdimento das propriedades. Pelos debates realizados no Congresso, o mais provável é que comece após condenação judicial com trânsito em julgado e não afete quem alugava ou arrendava imóveis e não tinha conhecimento das atividades de seus inquilinos. Ou seja, não seria a decisão final de um auditor fiscal, mas contaria com uma decisão judicial de última instância.

Ao se enveredar pelo tema do trabalho escravo contemporâneo, Bolsonaro cometeu uma série de erros.

Confusão de Bolsonaro sobre "trabalho análogo ao de escravo"

O presidente, sempre que se refere ao fenômeno da escravidão contemporânea, confunde-se. Hoje afirmou que "o trabalho análogo à escravidão também pode ser tipificado como escravo". Em julho do ano passado, disse: "Tem juristas que entendem que trabalho análogo à escravidão também é escravo".

"Trabalho análogo ao de escravo" ou "condição análoga à de escravo" nada mais é que a forma como nossa legislação se refere à escravidão contemporânea, à escravidão moderna, às formas contemporâneas de escravidão, ao trabalho escravo. Ou seja, é tudo a mesma coisa.

A Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhecia que alguém fosse dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Situações análogas à escravidão antiga, mas sem a propriedade.

E falando em tipificação... De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalho escravo não é caracterizado por "roupa de cama suja"

O presidente afirmou, nesta quinta, que trabalho escravo pode ser configurado por "alojamento mal ventilado, roupa de cama suja e afastamento não regulamentar entre uma cama e outra" e que quem for encontrado com isso poderia perder sua terra por conta da emenda 81. Dessa forma, acabou repetindo uma conhecida desinformação usada pelos contrários ao sistema de combate à escravidão.

Ela quer fazer crer que irregularidades trabalhistas configurariam trabalho análogo ao de escravo. Mas auditores fiscais do trabalho e procuradores do Trabalho afirmam que é uma situação de degradação do ser humano que pode levar à caracterização do crime, ou seja, um pacote de infrações graves.

Para deixar mais claro, vamos tomar como exemplo um caso que se tornou emblemático no Brasil. No dia 20 de outubro de 2017, o então presidente Michel Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso teria levado a auditores fiscais a culparem por empregador por "condições degradantes" e, portanto, trabalho escravo.

"O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo", afirmou em entrevista ao portal Poder 360. Ele também mostrou autos relacionados a extintor mal sinalizado e beliche sem escada, nem proteção lateral.

Contudo, Temer escondeu que haviam sido emitidos outros 40 (quarenta) autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratavam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e sem condições mínimas de higiene.

A fiscalização, que resultou no resgate de 63 trabalhadores, ocorreu entre março e abril de 2011, e foi coordenada pelo então auditor fiscal João Batista Amâncio. "Encontramos alojamento que era um lixo, com gente dormindo no chão, sem colchão. Faltava higiene, condições sanitárias. Mas também encontramos trabalhador com carteira de trabalho retida, trabalhador que não recebeu salário algum", afirmou a esta coluna na época.

De acordo com ele, durante uma fiscalização, auditores são obrigados a lavrar multas de todas as irregularidades encontradas, das mais leves às mais graves, de acordo com uma lista de infrações estabelecida.

Algumas autuações focam em detalhes tão banais que podem parecer um exagero. Porém, não é a falta de saboneteira, roupa de cama suja, a falta de copos plásticos ou a espessura de colchões, que configuram trabalho análogo ao de escravo, mas a somatória das situações graves.

Tanto que a sentença da juíza da 1ª Vara do Trabalho de Americana, Natália Antoniassi, de agosto de 2013, afirmou que "lamentavelmente, a existência de trabalhadores em condição análoga à de escravo restou perfeitamente caracterizada". Ela também ressaltou outros elementos, como o aliciamento. Trazidos de "regiões miseráveis do Norte e Nordeste" com a promessa de que teriam a viagem custeada pela empresa e que ganhariam um bom salário, eles encontraram outra realidade ao chegar à cidade.

Combater o trabalho escravo protege nossas exportações

Bolsonaro foi esperto ao afirmar que não é a favor do trabalho escravo no vídeo. Porque se o mercado internacional entender que o Brasil, que era considerado exemplo global no combate a esse crime, abandonar o processo de erradicação, terá mais problemas para se juntar ao desinvestimento trazidos diante do aumento das queimadas e do desmatamento ilegal.

Combater a escravidão significa proteger setores estratégicos da economia brasileira, como a produção de carne, soja e ferro gusa, uma vez que possibilita a venda de produtos socialmente limpos - o que não é mais uma vantagem comercial, mas uma condição básica para comercializar.

Além disso, graças à existência de um cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra escrava, a "lista suja", compradores de produtos brasileiros podem saber que o problema não afeta todo um setor, mas apenas uma minoria.

Parecer que somos um país que deixou de apoiar o combate ao trabalho escravo (foram mais de 55 mil libertados desde 1995) significará sermos vistos como um local de dumping social e concorrência desleal. Sem contar o pior, um país que escraviza.