Leonardo Sakamoto

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Opinião

Saldo do ajuste fiscal até aqui é sacrifício de pobres e cafuné nos ricos 

Considerando o que foi aprovado até aqui no pacote de ajuste fiscal encaminhado pelo governo Lula e alterado pelo Congresso, pode-se dizer que o lombo dos mais vulneráveis (novamente) levou sozinho a chicotada, poupando os mais ricos, em nome do bem maior. Só não pergunte "bem maior de quem?" em voz alta porque o mercado pode ouvir, ficar estressado e o dólar, disparar.

Das mudanças que afetam a qualidade de vida do andar de baixo, as que trarão maior impacto são a redução do universo que tem direito ao abono, que vai gradativamente passar dos que ganham dois para os que recebem 1,5 salário mínimo por mês, e a trava que reduz o ritmo de aumento do salário mínimo — afetando trabalhadores da ativa, pensionistas, aposentados e idosos e deficientes pobres.

O crescimento do mínimo ainda será acima da inflação, ao contrário dos anos de chumbo de Jair, mas é uma derrota para uma sociedade que tenta efetivar um salário mínimo que, para suprir as necessidades de uma família conforme previsto no artigo 7o da Constituição Federal, deveria ser de R$ 6.959,31 e não de R$ 1412 — segundo o Dieese.

Isso sem contar as restrições ao BPC que, se não tivessem sido desidratadas, causariam um impacto ainda maior.

Ao mesmo tempo, a limitação dos supersalários do funcionalismo público, eliminando penduricalhos que garantem remunerações beeeeem acima do limite de R$ 44 mil, ganhou um gatilho que permite que ela seja contornada. E a proposta anunciada pelo ministro Fernando Haddad, que visa a recolher impostos sobre os rendimentos de quem ganha mais de R$ 600 mil por ano (R$ 50 mil/mês) partindo de um mínimo de 10% (o que significaria o início de uma taxação de dividendos hoje isentos), ainda não foi nem apresentada.

Sem essas medidas de caráter civilizatório, o andar de cima foi poupado.

O governo afirma que a mudança na taxação dos ricos virá mais para frente, junto com a proposta para isentar quem ganha até R$ 5 mil do Imposto de Renda. Quem acompanha a coluna sabe que venho defendendo que um pacote para ser justo deve aprovar uma pancada maior em quem ganha mais, protegendo os que sempre se lascam. E as duas coisas devem acontecer ao mesmo tempo. Contudo, vamos terminar o ano exatamente com o contrário, com a sociedade esperando Godot e um Estado que é um Robin Hood às avessas.

Em 1995, o governo Fernando Henrique Cardoso concedeu um "benefício" aos mais ricos, a isenção de taxação de dividendos recebidos das empresas por acionistas. Benefício sim, uma vez que o mimo não está presente nos países desenvolvidos da OCDE e faz com que a classe média pague bem mais impostos do que os super-ricos. Toda vez que tentaram mudar isso, o povo montado no cascalho mostra os dentes.

Nos últimos dias, bilhões de dólares foram mandados para fora do país muito por conta de gente rica que quer se proteger dessa hipótese de taxação sobre os que ganham mais de R$ 600 mil. Nem escondem a cara de pau, é vergonhoso.

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Outra ação importante seria criar novas alíquotas do Imposto de Renda de Pessoa Física para os ricos. Poderíamos incluir também aqui a revisão das deduções de despesas em saúde no Imposto de Renda de Pessoa Física, que não contam com nenhuma limitação e beneficiam, hoje, principalmente, as classes média alta e alta. Também não rolou.

É fato que foi aprovada uma trava para impedir renovação e concessão de benefícios fiscais em momentos de déficit, o que foi importante, mas pouco. Subsídios representam uma montanha de meio trilhão de reais concedidos a empresas. Alguns são justos, outros, uma aberração alimentada pelo lobby. O Brasil viu uma avassaladora campanha de propaganda forçar a continuidade da desoneração da folha de pagamento de 17 setores econômicos, ao contrário do que desejava o governo Lula. A imprensa estava entre esses setores, diga-se de passagem.

Claro que tirar dos muito ricos não vai resolver as questões fiscais do país. E que inflação é imposto que lasca principalmente os mais pobres. Mas é uma baita safadeza que, sob a justificativa de garantir a estabilidade financeira, seja subtraída grana usada para garantir um mínimo de dignidade a quem tem menos enquanto sem medidas para acabar com a farra dos que mais têm.

A questão não é deixar de aprovar medidas austeras, mas socializar a chicotada.

Perceber que estamos todos no mesmo barco é o mínimo em uma democracia. Como já disse aqui várias vezes, o Brasil é um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade e primeira classe pague passagem progressivamente proporcional à sua renda.

Enquanto isso não acontece, seguimos parecidos, contudo, como um navio remado por escravizados que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote sobre trabalhadores, enquanto a primeira classe ouve violino.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL