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Reinaldo Azevedo

Mandetta encara Bolsonaro: não se demite; chefe que faça besteira por conta

Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta durante conversa com a Frente Nacional de Prefeitos sobre o combate ao coronavírus. Presidente não conseguiu arrastar ministro para a sua tese tresloucada - Foto: Isac Nóbrega/PR
Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta durante conversa com a Frente Nacional de Prefeitos sobre o combate ao coronavírus. Presidente não conseguiu arrastar ministro para a sua tese tresloucada Imagem: Foto: Isac Nóbrega/PR

Colunista do UOL

31/03/2020 05h40

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O ministro Luiz Henrique Mandetta caiu em desgraça do coração de Jair Bolsonaro. O presidente exigia dele que endossasse a sua tese tresloucada, e única no mundo, de fim de qualquer quarentena para impedir a expansão do coronavírus, com o confinamento, sabe-se lá como, apenas dos idosos. O ministro, obviamente, recusou o "brasilicídio" defendido por Bolsonaro, o que destruiria, adicionalmente, se sobrevivesse ao vírus, a sua carreira de político e sua reputação de médico. Mandetta continua a defender o isolamento social. Mais: já disse a Bolsonaro que não vai pedir demissão. Se o chefe quiser, que o demita.

Aquele a quem alguns ainda chamam "Mito" decidiu, então, submeter o ministro da Saúde a rituais de humilhação a que já havia exposto auxiliares diretos e fieis que caíram em desgraça, como Gustavo Bebianno e general Santos Cruz, ambos demitidos, respectivamente, da Secretaria-Geral da Presidência e da Secretaria do Governo, depois de fritura vergonhosa e de prova escancarada de deslealdade... do chefe. Eram dois neófitos da política, sem traquejo.

Não é o caso de Mandetta. Pessoa experimentada, com trânsito no Congresso, conexões com o empresariado e apreço da bancada ruralista, ele não depende da vontade de Bolsonaro para existir politicamente. E tem se comportado de maneira correta na crise, fazendo a articulação, que Bolsonaro se nega a fazer, com pesquisadores, médicos, governadores e parlamentares. Sua abordagem técnica do problema rendeu-lhe, por óbvio, espaço no noticiário. Condescendeu com o chefe e fez uma crítica abjeta à imprensa no sábado. Desculpou-se nesta segunda. Sigamos.

Mandetta não pôs em prática a orientação de Bolsonaro, que corresponderia a uma espécie de homicídio em massa. O "capitão", como alguns o chamam, não gosta de ser contrariado. Alimenta, parece, um sentimento pelo seu auxiliar que fica num território muito perigoso entre o ciúme e a inveja. Tudo indica que vê surgir não uma resposta técnica para o coronavírus, mas uma ameaça à sua própria liderança. Aí cabe a pergunta: qual liderança? Só se for aquela do tresloucado que sai pregando bobagens por Ceilândia e Taguatinga e que ameaça os governadores com um decreto de volta à normalidade que, se baixado, seria fulminado pela Justiça.

Mas Bolsonaro quis mostrar quem manda. Determinou que as coletivas diárias sobre o combate ao coronavírus sejam feitas agora no Palácio do Planalto, não mais no ministério da Saúde. E assim se fez. Mandetta será apenas um dos ministros a falar. Outros estarão presentes. Nesta segunda, antecederam-no os titulares da Casa Civil, Infraestrutura, AGU, Defesa e Cidadania. Ninguém tinha nada de novo a falar. Só então a palavra foi concedida ao titular da Saúde.

Como não nasceu ontem, o ministro teve de mandar os devidos recados: a Bolsonaro, aos presentes, à imprensa e ao conjunto dos brasileiros. Não vai mudar a sua abordagem. Mais de uma vez, defendeu a necessidade da quarentena, apoiando explicitamente o trabalho dos governadores e da imprensa. Disse:
"A Saúde é um norte, um farol. Enquanto não temos uma resposta mais cientificamente comprovada, a Saúde vai falar 'para e vamos evitar contágio'. Isso não é a Saúde ser boa ou má, estar certa ou estar errada. Isso é nosso instinto de preservação".

O mal-estar se explicitou quando lhe dirigiram uma pergunta sobre sua eventual demissão. Para espanto de todos, o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, tomou o microfone e se antecipou: "[Quero] deixar claro para vocês: não existe essa ideia de demissão do ministro Mandetta. Isso está fora da cogitação no momento".

Espirituoso, mas ciente do que se passava ali, o próprio ministro emendou, de modo irônico: "Vamos lá, em política, quando a gente fala 'não existe', a pessoa já fala 'existe'."

Estavam previstas oito perguntas. Ao ouvir a quarta, sobre as andanças de Bolsonaro pelo Distrito Federal, a mesa imediatamente se levantou e deu a coletiva por encerrada. Assim trabalha o presidente da República. Ele já confessou estar com "o saco cheio de Mandetta". O que o leva a se indispor com o seu ministro da Saúde, que vem fazendo um trabalho correto, do qual ele próprio poderia ser um beneficiário político? Já explicitei aqui a alma profunda de Bolsonaro: o seu prazer em ser odiado — e, pois, em odiar também — é muito superior ao seu eventual prazer de ser amado. E cada vez menos pessoas o amam. Eis aí o que pode ser um eventual traço de recuperação da saúde, mental ao menos, em meio a tanta morbidade...