Ramos, o valente, nega golpe e ameaça com golpe! E Mark Milley, o fracote
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Alguns militares brasileiros têm um estranho jeito de negar a possibilidade de um golpe de estado: primeiro simulam ofender-se até com a pergunta. Depois, bem... Rola um "É bom não abusar..." Vale dizer: sim, eles acham possível. Leiam este trecho da entrevista de Luiz Eduardo Ramos à "Veja". Ele é secretário de Governo e, ora, ora, general da ativa, o que é uma aberração única entre as democracias. Volto em seguida.
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Qual a possibilidade de um golpe militar no Brasil?
Fui instrutor da academia por vários anos e vi várias turmas se formar lá, que me conhecem e eu os conheço até hoje. Esses ex-cadetes atualmente estão comandando unidades no Exército. Ou seja, eles têm tropas nas mãos. Para eles, é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.
O senhor se refere a exatamente o quê?
O Hitler exterminou 6 milhões de judeus. Fora as outras desgraças. Comparar o presidente a Hitler é passar do ponto, e muito. Não contribui com nada para serenar os ânimos. Também não é plausível achar que um julgamento casuístico pode tirar um presidente que foi eleito com 57 milhões de votos.
O que seria um julgamento casuístico?
Um julgamento do Tribunal Superior Eleitoral que não seja justo. Dizem que havia muitas provas na chapa de Dilma e Temer. Mesmo assim, os ministros consideraram que a chapa era legítima. Não estou questionando a decisão do TSE. Mas, querendo ou não, ela tem viés político.
E se essa impugnação vier a acontecer?
Sinceramente, não vou considerar essa hipótese. Acho que não vai acontecer, porque não é pertinente para o momento que estamos vivendo. O Rodrigo Maia (presidente da Câmara) já disse que não tem nenhuma ideia de pôr para votar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Se o Congresso, que historicamente já fez dois impeachments, da Dilma e do Collor, não cogita essa possibilidade, é o TSE que vai julgar a chapa irregular? Não é uma hipótese plausível.
(...)
RETOMO
Ou seja: Ramos acena com a hipótese ultrajante do... "golpe", só afastada caso, então, o TSE vote de acordo com a pretensão do governo.
Observem que ele nem mesmo se refere às acusações que pesam ou venham a pesar contra a chapa que elegeu Bolsonaro. Ele se volta para a chapa que elegeu Dilma-Temer — notando sempre que a presidente já havia sido afastada.
Mas e se aparecer razão para a cassação da chapa? Bem, aí ele nem quer pensar. Seu colega, o general Augusto Heleno, chama isso de "consequências imprevisíveis".
É um deboche.
O general pode ficar tranquilo que todos entendemos que ele quis deixar claro que tem, se preciso, as tropas nas mãos. Ele o diz ao menos. Afinal, foi instrutor de todos os que as comandam. Ele os conhece. Eles o conhecem.
É evidente que se trata de uma ameaça!
Alô, as sete excelências que compõem o TSE! Pouco importa o que possa aparecer por aí. O general Ramos, instrutor de todos os que comandam tropas, não aceita a cassação da chapa. Ele ignora o conteúdo dos autos. E daí? Já decretou que seria uma cassação casuística.
E por que ele pode ser, então, juiz dos juízes — ou melhor: por que ele pode ser o limite do juízo dos juízes? Deve ser, justamente, por causa das tropas.
Nem vou especular se um presidente que incita seus milicianos a invadir hospitais pode ser comparado a um líder fascista. O questionamento é bobagem porque o método é fascistoide.
"OUTRO LADO"
Acho impressionante, vexaminoso e perverso que um general-de-exército se deixe trair e se refira a uma parte dos brasileiros como "o outro lado". Parece que as Forças Armadas do Brasil, então, existem para sustentar as posições de um dos lados e, se preciso, prender o outro.
MARK MILLEY
Vejo este Ramos, um general da ativa que comete o despropósito de ser coordenador político de governo, ameaçando um tribunal superior e penso no general Mark Milley, chefe do Estado Maior Conjunto dos EUA.
Ele pediu desculpas por ter participado, de uniforme, no dia 1º de junho, da caminhada de Donald Trump para fazer uma foto na Igreja Episcopal de São João, perto da Casa Branca, depois de a Guarda Nacional ter dissolvido um protesto contra o racismo e a violência policial.
Disse sem tergiversar a autoridade máxima militar da maior máquina de guerra da história da humanidade: "Eu não deveria ter estado lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna."
E o fez num vídeo, para ser replicado para o mundo, a ser exibido no início do ano letivo da Universidade Nacional de Defesa.
Disse Mais:
"Como oficial da ativa, foi um erro, e aprendi com ele. Espero sinceramente que todos nós aprendamos. Nós, que usamos as insígnias de nossa nação, que viemos do povo, devemos sustentar o princípio de Forças Armadas apolíticas, que tem raízes firmes na base da nossa República."
DOCUMENTO
Trump já havia classificado de terroristas as manifestações contra o racismo e ameaçado chamar as Forças Armadas ou convocar a Guarda Nacional.
Poucos se deram conta, mas, no dia 2, Milley assinou uma declaração, corroborada pelos comandantes de todas as forças militares do país, lembrando que:
- cada membro das Forças Armadas dos EUA jurou defender a Constituição e os valores que nela vão;
- a Constituição está fundada no princípio de que homens e mulheres nascem livres e iguais e têm de ser tratados com dignidade e respeito;
- a Carta garante o direito à liberdade de expressão e à reunião pacífica;
- os homens e mulheres que vestem farda estão comprometidos com os valores da Constituição;
- os destacamentos da Guarda Nacional estão sob o comando dos governadores e devem proteger a vida, a propriedade (a vida veio primeiro, note-se...), a paz e a segurança pública;
- as Forças Armadas são compostas por pessoas de todas raças, cores e credos e estão subordinadas à Constituição.
Vale dizer: Milley deixou claro que os militares não mandam na Constituição. É a Constituição que manda nos militares.
A maior máquina de guerra do mundo — que, a rigor, pode se impor em qualquer lugar do planeta — deixa claro que jamais se imporia a seu próprio povo e aos poderes constituídos.
Sem guerras para lutar, alguns dos nossos generais preferem se voltar contra os nacionais — que o general Ramos chama "o outro lado".
Isso me lembra a maior tragédia da história argentina: a guerra das Malvinas. Morreram ou desapareceram nada menos de 30 mil pessoas durante a ditadura militar.
Ou por outra: esmagar a população civil era tarefa fácil, coisa que qualquer covarde despreparado podia fazer.
Quando chegou a armada inglesa, então se pôde conhecer do que eram capazes aqueles valentões.
A lamentar que tantos jovens, quase crianças ainda, tenham perdido a vida em razão dos homicidas compulsivos que assumiram o comando das Três Forças no país.
ENCERRO
Que fique, então, o recado do general Ramos aos sete ministros do TSE: não importa quantas cobras e lagartos possam eventualmente aparecer por aí, o general não quer nem pensar na hipótese de uma cassação da chapa.
Ele diz que é bom não esticar a corda.
Todos os comandantes de tropas foram seus alunos, ele avisa também.
E, como sabemos, há uma tradição a ser honrada de forças militares latino-americanas, né? Sempre foram exímias na repressão ao próprio povo.
Mas, por favor, não falemos sobre golpe.
Isso é ultrajante.
A não ser quê.