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Reinaldo Azevedo

O voto exemplar de uma desembargadora que cobra uma Lava Jato dentro da lei

Desembargadora Simone Schreiber, do TRF-2: um voto desassombrado, técnico e corajoso. E que não se verga ao alarido -  Fernando Frazão/Agência Brasil
Desembargadora Simone Schreiber, do TRF-2: um voto desassombrado, técnico e corajoso. E que não se verga ao alarido Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Colunista do UOL

18/09/2020 08h34

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Transcrevo neste post, na íntegra, o voto dado nesta quinta-feira pela desembargadora Simone Schreiber no julgamento, pelo Órgão Especial do TRF-2, da ação disciplinar contra o juiz Marcelo Bretas. Ele foi punido com censura por 12 votos a 1. Simone seguiu o voto do relator, Ivan Athiê, que descartou a imputação de atividade político-partidária, o que poderia ensejar uma medida mais dura. Não obstante, a desembargadora deixa claro o óbvio, com o que concordo integralmente: o juiz participou, sim, de atos político-eleitorais — e, por consequência, digo eu, partidários. Leiam os motivos por ela apontados.

Seu voto é auspicioso porque parece que o Judiciário brasileiro começa a despertar do transe provocado pela Lava Jato, esses longos seis anos em que se tem confundindo o necessário combate à corrupção com a corrosão do estado de direito e com a agressão permanente ao devido processo legal.

Simone faz clara objeção, por exemplo, à aberração que consiste um juiz federal destinar dinheiro decorrente de multas pagas por delatores para Prefeituras ou para algum outro setor da administração. E ela diz o óbvio: essa não é competência de um juiz nem tarefa do Poder Judiciário.

A desembargadora também vai ao centro dos desatinos em curso quando critica o que chama de "supercompetência" da Lava Jato, a partir de conexões não muito claras entre os casos investigados. Tome-se, e agora digo eu, o caso da Fecomercio: por que diabos esse assunto seria próprio da Lava Jato? "Ah, porque existem lá alguns nomes remanescentes do governo Sergio Cabral. É uma piada, né? A propósito: por que os múltiplos escândalos protagonizados pelo próprio Cabral foram investigados pela operação? Vale dizer: é Lava Jato tudo o que a Lava Jato quer investigar. E não é o que ela dispensa.

Espero que essa consciência da desembargadora se espraie pelo Poder Judiciário. Afinal de contas, a Lava Jato já corrompeu o caráter do Ministério Público Federal numa escala que vai condenar esse ente a cometer desatinos por muitos anos. E está, também, corroendo o Judiciário.

Nas palavras da desembargadora:
"É preciso trazer as questões da Operação Lava Jato para um patamar mais normal, de como deve ser conduzido todo o processo criminal... Um patamar mais republicado, um patamar mais impessoal, resgatando a ideia da imparcialidade do Poder Judiciário no trato desses processos criminais."

É isso. Leiam a íntegra do voto de Simone Schreiber. Os intertítulos pertencem à edição, não à desembargadora.

Nota: Simone é, originalmente, juíza federal conhecida e respeitada por seus pares. Já foi, inclusive, diretora da Ajufe (Associação dos Juízes Federais).

Bem, ainda há juízes no Rio de Janeiro.

EXPLORAÇÃO DO PRESTÍGIO DA LAVA JATO
"Entendo que o fato de o juiz ser responsável pela Operação Lava Jato, que tem como alvo inúmeros políticos do Rio de Janeiro, aumenta a sua responsabilidade no que se refere a um comportamento de autopreservação. Isso aumenta a sua responsabilidade. Ele deve se conduzir de maneira absolutamente reservada; ele deve se preservar. Ele não deve permitir que alguns políticos, ou que alguns segmentos desse mundo político, capitalizem para si o que seria o sucesso da operação Lava Jato.

Então, os resultados obtidos com a operação Lava Jato, na verdade, as condenações que foram feitas, as absolvições, o dinheiro que foi recuperado, tudo isso deve representar o resultado de um trabalho sério feito pela Justiça, um trabalho imparcial da Justiça. A Justiça não pode simplesmente permitir que esse tipo de resultado acabe sendo interpretado como um apoio a alguns segmentos políticos; que ele seja aproveitado por alguns segmentos políticos como discurso de palanque.

Evidentemente, o juiz deve se privar, deve se restringir, ele não deve se permitir subir no palanque com um político. Independentemente de ser um palanque de púlpito ou de inauguração de obra. Esse comportamento, um juiz não pode ter. Ele não pode agir assim. Ele não pode ser ingênuo a esse ponto, acreditando que isso não signifique uma capitalização política da Operação Lava Jato. Isso acaba gerando uma dúvida, um descrédito sobre o próprio Poder Judiciário, especificamente do nosso tribunal."

O DINHEIRO E OS MÉTODOS DA LAVA JATO
"No caso do juiz Marcelo Bretas, algumas coisas me chamaram a atenção no interrogatório, e eu registrei aqui no meu resumo. Várias vezes, o juiz Marcelo Bretas falou sobre como o fato de ele ter destinado alguns dinheiros, alguns recursos recuperados na Operação Lava Jato, para a Segurança Pública aproximou o juiz Marcelo Bretas de algumas figuras militares que acabaram, depois, sendo enaltecidas nas suas redes sociais. E como, também, em determinado momento, houve uma demanda do prefeito Marcelo Crivella para que ele doasse recursos públicos para a Prefeitura.

Eu chamo a atenção de Vossas Excelências para o fato de que alguns comportamentos e alguns métodos que foram utilizados nessa Operação Lava Jato devem ser objetos de reflexão aqui pelo tribunal, inclusive essa autonomia que se dá ao juiz para decidir destinação de recursos públicos, e o juiz, eventualmente, poder decidir se ele vai destinar os recursos a uma Prefeitura, a um esforço pela segurança pública do Rio de Janeiro.

Eu acho que isso não compete a nós, juízes. O juiz não deveria ter essa liberdade. Isso acaba fazendo com que alguns laços sejam firmados, alguns laços que não deveriam ser firmados. O próprio juiz parece não ter consciência disso quando ele reforça que vínculos foram construídos — vínculos que ele considera de admiração pelo seu trabalho a partir de determinados comportamentos adotados na condução dessa operação.

Então algumas questões devem ser pensadas. Não estou dizendo aqui que a operação Lava Jato não tenha a sua importância. E que ela não tenha sido uma importante mudança de paradigma de algumas questões que nós conhecemos no direito penal, especialmente a questão da seletividade. E que ela não tenha permitido a apuração de crimes muito relevantes, recuperação de valores num patamar muito importante e, eventualmente, punição de pessoas que geralmente não são atingidas pela Justiça Penal, pelo aparato repressivo penal.

Mas isso traz desafios, isso traz responsabilidades".

A SUPERCOMPETÊNCIA: É TUDO LAVA JATO?
"Eu também sou crítica, aproveito para dizer isso aqui, dessa questão da supercompetência, das conexões que vão se estendendo indefinidamente. E o juiz se queixa em seu interrogatório. Diz que há quatro anos, cinco anos, ele é juiz da Lava Jato e [que] isso impõe a ele sacrifícios muito desproporcionais. Contudo, essa superconexão, que faz com que a operação acabe pessoalizada -- um juiz é símbolo de todo um esforço de combate à corrupção --, isso também é muito pernicioso para a Justiça.

Eu acho que, com essa medida de censura ao juiz Marcelo Bretas, talvez nós possamos um pouco corrigir o curso das coisas e trazer as questões da Operação Lava Jato para um patamar mais normal, de como deve ser conduzido todo o processo criminal... Um patamar mais republicado, um patamar mais impessoal, resgatando a ideia da imparcialidade do Poder Judiciário no trato desses processos criminais.

Diversos corregedores que antecederam o doutor Luiz Paulo já ressaltaram que o doutor Marcelo Bretas foi orientado na Corregedoria, foi orientado individualmente, foi orientado verbalmente sobre o risco desse comportamento, e o juiz ainda não compreendeu bem qual é o seu papel e qual deve ser a sua postura na condução desse processo. Então me parece que essa é uma boa oportunidade.

ATIVIDADE POLÍTICO-PARTIDÁRIA, SIM!
"E, em relação aos fatos que estão narrados na portaria de instauração, eu não considero adequado que um juiz compareça a um culto religioso, independentemente de caracterizar ou não atividade político-partidária. Evidentemente, ele subiu num palanque porque [era] um culto religioso de grandes dimensões, que reúne centenas de milhares de pessoas, num ambiente público, com um presidente da República e com um prefeito num ano eleitoral...

Ele, várias vezes, no seu interrogatório, diz que, na verdade, o presidente da República não está em disputa eleitoral direta e, portanto, não era um ato com caráter eleitoral. O prefeito está em campanha. Ele é pré-candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro. Esse evento ocorreu no mês de fevereiro desse ano. E, também, desculpem dizer, o presidente sempre está em atividade político-eleitoral, independentemente de ser para o cargo que ele próprio ocupa, mas ele também precisa construir as suas bases. Isso é compreender o funcionamento do regime democrático.

O presidente não está exercendo atividade político-eleitoral só no ano em que ele é candidato à reeleição a presidente da República. Ele tem de fazer isso. Ele tem de se articular politicamente o tempo inteiro. Então é bom que o juiz Marcelo Bretas receba agora essa censura porque ele precisa compreender que essa é uma maneira como ele não pode se comportar, independentemente de o culto ter tido um caráter mais preponderantemente religioso.

E a questão da inauguração da obra, nem é preciso dizer a natureza político-partidária, de promoção de políticos, que é a inauguração de uma obra pública, que não tem nada a ver com o Poder Judiciário. Ainda que tivesse, o juiz não está representando o Poder Judiciário nesse evento porque ele não tem procuração de nenhum de nós para representar o nosso tribunal em nenhum evento".