Michelle toma liberdade de expressão por crime e tenta proibir "Micheque"
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
No post anterior, afirmo:
"Quem não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão acaba confundindo liberdade de expressão com crime. E, por óbvio, toma a democracia que pune o preconceito como uma manifestação de autoritarismo, reivindicando que seu autoritarismo seja uma das manifestações da democracia."
Mílton Ribeiro, ministro da Educação, não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão. Daí que pareça achar que praticar homofobia seja um direito.
Já a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, não sabe a diferença entre liberdade de expressão e crime, daí que esteja pedindo punição a uma banda de rock. Quer ainda, segundo O Globo, que uma de suas músicas seja proibida em ambientes públicos e privados!
Públicos e privados? Uau! Nem a censura da ditadura ousou tanto. O regime dos milicos proibiu músicas em penca. Mas se desconhece que alguma casa tenha sido invadida em busca de "Cálice", de Chico Buarque.
Por que a braveza de Michelle? Tico Santa Cruz, da banda de rock "Detonautas", fez uma música intitulada "Micheque", que é o apelido que a primeira-dama ganhou nas redes sociais depois que se descobriu uma penca de depósitos feita em sua conta por Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar. Acabou se popularizando o valor de R$ 89 mil. Na verdade, foi um pouco mais do que isso. Só para lembrar:
Os depósitos foram feitos nas seguintes datas e respectivos valores:
De Fabrício para Michelle
- de outubro de 2011 a abril de 2013: 12 cheques de R$ 3 mil, totalizando R$ 36 mil;
- de abril a dezembro de 2016: 10 cheques de R$ 4 mil, totalizando R$ 40 mil.
De Márcia Aguiar para Michelle
- de Janeiro a junho de 2011: cinco cheques de R$ 3 mil e 1 cheque de R$ 2 mil, totalizando 17 mil.
Assim, a Família Queiroz repassou só à primeira-dama um total de R$ 93 mil entre outubro de 2011 e dezembro de 2016.
Leiam a letra:
Hey, Michelle, conta aqui para nós
A grana que entrou na sua conta é do Queiroz?
Hey, capitão, como isso aconteceu?
Levante a mão pro alto e agradeça muito a Deus
Zero um é o Willy Wonka
Zero dois é o Bananinha
Zero três, o Tonho da Lua que comanda a turminha.
Passa o dia conspirando, arrumando confusão
Mas é tudo gente boa, gente de bom coração
Hey, Michelle, conta aqui para nós
A grana que entrou na sua conta é do Queiroz?
Hey, capitão, como isso aconteceu?
Levante a mão pro alto e agradeça muito a Deus
Se liga rapá, quem tu tá pensando que enganou?
Agora vem cá e mostra tudo que você pregou
Porque eu, sei lá, quando a gente passa alguém pra trás
E fica impunemente sempre se arriscando mais!
O risco é maior e a ganância toma tudo então
E quanto mais tem mais se sente o dono da situação
Só que comigo não. Nunca me enganou
Então responde logo como essa grana aí entrou
Que juiz seria doido o bastante para atender ao pedido de Michelle, que teria prestado queixa por calúnia, injúria e difamação?
RETOMO
Duvido que a primeira-dama tenha sucesso já na primeira instância. Se acontecer, a coisa vai parar necessariamente no Supremo.
Nada na letra da música vai além do que noticiam os órgãos profissionais de imprensa. "Ah, o título da canção, "Micheque", é uma injúria". Bem, a dita-cuja é sempre de índole subjetiva. A mulher de Bolsonaro pode até se sentir magoada e ferida com o apelido e o título, mas se trata apenas de um trocadilho associando seu nome a cheques, ironia ancorada nos fatos, não é mesmo?
Afinal, 28 cheques do casal Queiroz tiveram a sua conta como destino. Artistas deveriam ser impedidos de fazer alusões à realidade porque um poderoso de plantão se incomoda com a ironia?
Eis um caso em que se tenta confundir liberdade de expressão com crime. Mais: a música faz perguntas apenas. Nem mesmo se pode sustentar que a letra atribui um crime à primeira-dama — isso não está lá — ou que apele a inverdades para difamá-la. Os fatos a que a letra alude aconteceram.
Pois é... Indagado por um repórter de O Globo, certa feita, sobre os cheques, Bolsonaro afirmou: "Minha vontade é encher a tua boca com uma porrada, tá?" Já a primeira-dama dá sinais de que prefere a porrada da censura.
Michelle é, no geral, discreta e dá pouco trabalho a Bolsonaro. Não fosse o ambiente machista e misógino que cerca o presidente, sua figura poderia até ser mais bem explorada em favor do marido. Ocorre que ela pertence a uma família singular, e o clã, como sabemos, mantém relações bastante heterodoxas na área de transferências de recursos — em cheque e, sobretudo, em dinheiro vivo.
Não há como o pleito da primeira-dama ser bem-sucedido numa democracia. E creio que ela está piorando as coisas, não? Caso a música fosse censurada, o que me parece improvável — impossível mesmo! —, quem seria capaz de banir o apelido "Micheque" das redes sociais?
Tudo indica que a primeira-dama está com uma assessoria jurídica capenga. Sem contar que, em situações assim, o esperneio só piora as coisas.
Tenho uma sugestão à primeira-dama para minorar o estrago: por que ela não explica a razão dos depósitos?