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Reinaldo Azevedo

Na ânsia de lacrar no debate, Trump pode ter sido vítima do próprio estilo

Donald Trump e Joe Biden durante o debate: presidente dos EUA estava empenhado em criar confusão, não em confrontar propostas e ideias - Reprodução/Youtube-Fox News
Donald Trump e Joe Biden durante o debate: presidente dos EUA estava empenhado em criar confusão, não em confrontar propostas e ideias Imagem: Reprodução/Youtube-Fox News

Colunista do UOL

30/09/2020 07h54

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O republicano Donald Trump, presidente dos EUA, e o democrata Joe Biden, que ambiciona a cadeira ocupada por seu antípoda, travaram o primeiro debate eleitoral dos três previstos. A mediação, ou quase isso, coube ao jornalista Chris Wallace, da Fox News. O confronto tinha temas pré-definidos: "Suprema Corte, Covid-19, economia, raça e violência nas cidades e a integridade da eleição". A pauta foi cumprida. A questão é saber como... O debate teve apenas quatro "melhores momentos": quando Biden mandou Trump calar a boca, quando o chamou de palhaço, quando disse que seu adversário é um mentiroso e quando o tachou de racista. O resto foi um show de horrores.

Não se assistiu propriamente a um debate, mas a uma bagunça. Por mais que Wallace tenha tentado manter as rédeas, perdeu o controle do evento. E basta rever o embate para constatar que o grande culpado pela desordem foi Trump. Ele não estava disposto a debater, e isso não é exatamente novidade. Interrompia a todo instante seu oponente, buscando desestabilizá-lo, apelando à sua conhecida agressividade e à sua disposição para ignorar as regras do jogo — inclusive as da democracia.

Biden não é um grande orador. Embora tenha apontado o desempenho pífio de Trump na liderança do combate à Covid-19 — e isso poderia ser dito de outro modo: na verdade, sua atuação levou à expansão da doença —, a crítica foi modesta, pouco contundente, dados o número de contaminados e mortos e o desastre que a pandemia provocou na economia do país.

Trump chegou para o confronto com um passivo nas costas: o New York Times descobriu que ele é um dos maiores sonegadores de impostos do EUA. Biden, claro!, tratou do assunto e o desafiou a exibir as suas declarações, mas, de novo, faltou contundência.

Estão previstos dois outros enfrentamentos até a eleição, que ocorre no dia 3 de novembro: em 15 de outubro, o confronto se dá em Miami, na Flórida, com mediação de Steve Scully, do canal C-SPAN. Os dois responderão também a perguntas de eleitores. Em 22 de outubro, o debate acontece em Nashville, no Tennessee, com mediação de Kristen Welker, da NBC News.

AS REGRAS
Os americanos costumam fazer debates menos amarrados do que aqueles a que assistimos no Brasil, em que se garante, rigorosamente, o tempo de fala dos respectivos candidatos. Há desvantagens nos dois modelos. Por aqui, os encontros podem ser mortalmente aborrecidos porque mentiras clamorosas vão ao ar sem a chance imediata da contestação. A vantagem está no fato de que se consegue, ao menos, ouvir o que afirma cada postulante.

Esses embates diretos, que são uma tradição dos debates americanos, têm um pressuposto: parte-se do princípio de que os oponentes vão se respeitar, sem golpes baixos, não interferindo no tempo de fala do outro. Ao enfrentar Hillary Clinton, Trump já havia deixado claro que não se subordinava a regras: estava disposto ao vale-tudo. E repetiu a dose nesta terça-feira. Jogava para a sua plateia.

Suas milícias digitais querem precisamente aquilo que ele ofereceu: mentiras em penca, autoglorificação, desrespeito ao adversário, truculência e extremismo ideológico barato. Obviamente, não há um só trumpista que pudesse mudar seu voto a depender do desempenho do seu candidato. Da mesma sorte, quem já optou por Joe Biden não deve desistir de sua escolha por causa do debate. Não dá para saber como se comportarão os eleitores ainda indecisos. Nem um nem outro tiveram um desempenho inquestionavelmente superior. Trump, é certo, estava ainda mais agressivo do que de costume.

Parece que isso não pegou bem. Segundo levantamento feito pela CBS depois do debate, 48% dos que responderam a pesquisa disseram que Biden foi o vencedor; para 41%, foi Trump — e esse é mais ou menos o percentual que as pesquisas atribuem a cada um. Uma maioria expressiva de 69%, no entanto, mostrou-se irritada com o espetáculo degradante. Bem, o vídeo está disponível. Dá para saber quem é que se movia pelo ânimo da pura provocação.

ATAQUE ÀS INSTITUIÇÕES E GUERRA RACIAL
Trump está visivelmente desesperado. Mais uma vez, pôs em dúvida o resultado as eleições, sugerindo que a questão vai parar na Suprema Corte. Ou por outra: só não haverá fraude se ele vencer.

Tanto Biden como Wallace instigaram o presidente a condenar os movimentos supremacistas brancos, de extrema direita. O bufão, então, cobrou que lhe dessem nomes de grupos. Biden citou os "Proud Boys", notórios extremistas que fazem a apologia da violência. Aí Trump se mostrou por inteiro: não apenas deixou de censurar a milícia como recomendou que esta ficasse em estado de alerta. E emendou: "Alguém tem de fazer alguma coisa contra o [movimento] Antifa e a esquerda".

É inequívoco: o presidente dos EUA estimula o conflito racial. E, por óbvio, tem lado. Assim, quando Biden cravou nele a pecha de "racista", estava sendo apenas referencial.

Trump mentiu desbragadamente, sem medo do ridículo: sobre seu Imposto de Renda, sobre a tentativa de desmonte do Obamacare, sobre seu suposto programa de diminuição de poluentes, sobre a iminência da vacinação contra o coronavírus, sobre os cuidados que teria tomado para conter a pandemia...

É claro que muitos defensores da, bem..., civilização sonhavam em ver um retórico eficiente como Barack Obama a desmoralizar Trump: com frieza, calma, altivez e rapidez para confrontar, com dados, as mentiras que iam brotando livremente da boca do presidente. Essa figura não é Joe Biden.

De todo modo, acho que Trump acabou vítima de seu próprio estilo. O candidato que disputa a reeleição está muito à direita daquele que venceu em 2016. O mentiroso, mau palhaço e racista se mostrou por inteiro. Mereceu o cala-boca. Seus admiradores certamente adoraram, mas ele não tem como ganhar a eleição só com os fanáticos.