Reinaldo Azevedo

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Opinião

Entre extrema direita e democracia, há um fascistoide em pele de cordeiro

Há um mal-estar no Brasil chamado "Síndrome da Falta do Centro". Parece um problema de física, eventualmente de metafísica, mas não! Falo sobre política. Em alguns setores, o que se tem ainda é saudade — e há muito de justeza nisto — do finado PSDB. PSDB? Vamos de Torquato Neto, que foi cantado pelos Titãs: "Mas de repente a madrugada mudou/ e certamente/ aquele trem já passou/ e se passou/ passou daqui pra melhor/ foi!". Talvez não tenha sido para melhor, mas que foi, ah, isso foi. Já era!

Essa nostalgia do "centro" é sentida de modo mais agudo em algumas áreas. Na imprensa, é muito frequente. Há certa dificuldade por ali em se pronunciar e em se admitir a palavra "direita". Ela ainda se confunde com palavrão, falta de educação, modos rudes, ódio aos pobres. Quando há uma exposição mais clara do ideário e quando se o submete à história das ideias, o diagnóstico é inequívoco: "direitismo". Mas ainda há relutância: "Não, eu sou 'de centro'. Parece mais delicado.

E, se há alguém que me acompanha até aqui e avalia que estou demonizando o "direitismo", bem, ou não está entendendo, ou não estou sendo suficientemente claro. Respeitados os fundamentos da democracia representativa e as garantias individuais e públicas — e isso, hoje, se traduz por acatar os fundamentos da Constituição (da nossa, não da de outros) —, os direitistas deveriam ter a coragem de assumir o que pensam sem receio.

Eu tenho problemas com as chamadas "palavras-caixa" ou "palavras-gaveta". Hoje, a mais abarrotada de coisas incompreendidas, generalizações, simplismos e bobagens é "polarização". O que se sabe, com certeza, é que é preciso superá-la, exorcizá-la, esconjurá-la... Os que mais a pronunciam, diga-se, como um marco a ser superado são os covardes e preguiçosos (com frequência, as duas coisas), sem coragem ou disposição para combater a fascistização da política empreendida por Jair Bolsonaro e sua súcia. E, por óbvio, neste ponto, já me tornei eu mesmo, segundo essa turma, um agente da... polarização! Então ela não existe? Sim. Mas qual?

QUAL POLARIZAÇÃO?
Não é difícil identificar o discurso e a prática de extrema-direita no Brasil. Mas ou a polarização se faz de dois polos, ou se tem um erro de registro. Ou me contam agora -- por favor, não deixem para depois e matem a minha curiosidade -- onde está a extrema-esquerda que tensiona com o bolsonarismo, ou se está diante de uma fraude conceitual. E por que isso é importante? Porque aquela "Síndrome da Falta do Centro" é alimentada também por essa falácia. A ilação é verossímil, sim; é crível. Mas estupidamente falsa.

Um pouco mais sobre a polarização, antes que avance. Se há, hoje, no Brasil polos que tensionam a corda, tal tensão não é provocada, de um lado, pela extrema-direita e, de outro, pela extrema esquerda. A oposição principal se manifesta entre os que pretendem romper os fundamentos da democracia expressos na Constituição de 1988 (e pouco importa quanto defeitos tenha a Carta) e os que desejam preservá-los.

Sabem por que a "Síndrome da Falta de Centro" tem como demiurgo de sua fantasia literalmente um fantasma? Porque inexiste o meio-termo entre os que querem democracia e os que não querem.

Quando se fala do centrismo como um ente que rejeita as disrupções tanto à esquerda — de caráter revolucionário ou freneticamente reformista a ponto de impedir a consolidação de instituições — como à direita, com suas ações disruptivas de caráter fascistizante, então se está a falar de algo que realmente existe: trata-se da tal "democracia liberal" ou "democracia burguesa", que assumiu, no tempo, muitas vezes, as feições de social-democracia, modelo com o qual a direita conviveu muito bem também para conter a esquerda.

Observem: se a democracia é o meio-termo que rejeita os extremos disruptivos, inexiste um centro virtuoso se o "outro" de um dos polos é o próprio regime de liberdades. Esse lugar implica a morte do próprio regime. Eis aí o que se pode chamar de "Armadilha Turca". O "Partido da Justiça e Desenvolvimento", uma legenda disruptiva de acento religioso, decidiu que o seu "outro" era a democracia laica, que passou a ser tratada como um extremismo. Erdogan é um ditador que vai se perpetuando por meio de eleições, e parte considerável dos democratas está na cadeia.

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GOVERNO DE CENTRO-DIREITA?
Num evento com empresários na segunda, o ex-ministro José Dirceu fez a seguinte afirmação:
"O presidente Lula montou um governo que não é um governo de centro-esquerda, não. É um governo de centro-direita. Eu falo isso, todo mundo fica indignado, às vezes, dentro do PT. Porque realmente parte do PL, o PP e o PR, de certa forma, estão na base do governo. Porque isso é exigência do momento histórico e político que nós vivemos. Então acredito que Lula não optou pela polarização ou radicalização. Por que o Brasil está radicalizado, polarizado? Por causa do discurso que foi feito ontem no Rio de Janeiro: que é um fundamentalismo religioso com ataque à democracia. E ainda chamando o apoio da direita internacional e da direita norte-americana: não só do ex-presidente Trump como do Musk. Essa é a realidade que o Brasil está vivendo hoje".

Dirceu alterou a sua fala depois, por meio de nota, e continuou a dizer a verdade, embora deslocando o governo para a centro-esquerda:
"A assessoria de imprensa do ex-ministro José Dirceu (PT) esclarece que ele avalia o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como 'um governo de centro-esquerda, apoiado por partidos de direita', e não um governo de centro-direita, como acabou afirmando durante o Seminário Brasil Hoje, promovido pela Esfera Brasil.
Sua fala se deu no contexto de análise da atual polarização política, reforçando a ideia de que o governo se pauta pelo diálogo, com o ingresso de partidos como PP e Republicanos - 'uma exigência do momento histórico em que vivemos'.
A ideia de um governo de centro-esquerda, apoiado por forças de direita para consolidar uma maioria no Congresso e conquistar uma base social mais ampla já foi externada inclusive em entrevistas do ex-ministro à imprensa."

RETOMO
O governo é de "centro-direita" -- como acho que é -- ou de "centro-esquerda"? Tanto faz. De fato, a "polarização" se dá entre um governo democrático, com forte presença da direita, e o, na expressão do líder petista, "fundamentalismo religioso com ataque à democracia". Silas Malafaia pregou abertamente no evento de domingo que os comandantes militares imponham ao Senado o impeachment de Alexandre de Moraes. Bolsonaro o abraçou no palco e apoiou a mão em seu ombro. O golpista continua a pregar... o golpe.

"Você repudia, Reinaldo, que se tente uma alternativa de centro para a eleição de 2026?" Eu não repudio nada. Quero saber a que, ou a quem, chamam de "centrista", já que, para esses de que falo, o centrismo de Lula — e com viés à direita — não serve. Falaram-me outro dia até de Tarcísio de Freitas para esse posto — aquele que tem Guilherme Derrite como secretário de Segurança Pública, que considera Bolsonaro o maior líder popular do Brasil, que comparece a ato golpista ou que é saudado no palanque do golpismo.

VOLTANDO AO COMEÇO E ENCERRANDO
Iniciei este texto falando sobre os que padecem da "Síndrome da Falta de Centro" e depois apontei que, em muitos casos, trata-se de direitistas que pretendem passar um verniz nas suas convicções. Observei que isso nem seria necessário desde que abraçassem a democracia como valor inegociável.

Encerro trazendo, mais uma vez, Tarcísio ao debate. É evidente que ele goza da boa vontade de parte considerável da imprensa, não? Fiel discípulo de Bolsonaro, busca trânsito também em setores que são hostilizados pelo ídolo. Não abre mão de ser um deles, mas pretende, com Derrite e tudo, exibir uma face mais civilizada.

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Qualquer um que se apresente, chame-se Tarcísio ou J. Pinto Fernandes, para ser um "centro" entre a extrema-direita e o regime democrático será apenas e tão-somente o candidato a coveiro da própria democracia. O meio-termo entre o bolsonarismo e a Constituição será só um fascistoide em pele de cordeiro.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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