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Reinaldo Azevedo

Intercept Brasil: um caso surrealista de censura à imprensa no Amazonas

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/11/2020 08h07

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Se você clicar aqui, lerá a reportagem — e a reportagem de uma reportagem — publicada no site The Intercept Brasil. E também vai constatar que muitas coisas estão fora da ordem no país. Inclusive fora da ordem legal. E por obra e graça de quem tem o dever funcional de aplicar a lei.

Reproduzo alguns trechos do texto que está no ar:
"SE VOCÊ TENTOU acessar a reportagem "Candidato de Manaus conta com o hospital da família, a covid e o Judiciário para subir nas pesquisas" e não conseguiu, o motivo é simples: nós fomos censurados. O texto, publicado em 13 de novembro e retirado do ar pela Justiça Eleitoral amazonense dois dias depois, contava como o candidato agora derrotado à prefeitura da capital Ricardo Nicolau, do PSD, aproveitou o acesso privilegiado que tinha ao interior do hospital municipal de campanha de Manaus para gravar imagens vestido de branco e visitando leitos de pacientes como se fosse um médico - ele não é."

O material foi usado em sua campanha eleitoral para colar a imagem de Nicolau a do hospital, construído em quatro dias. A propaganda também tentava criar a narrativa de que o candidato (que ficou em 4º lugar, com 12% dos votos) foi responsável pelo tratamento de centenas de pacientes com covid-19. Para isso, Nicolau usava o livre acesso que tinha ao hospital de campanha da capital, já que ele era parte do grupo Samel, rede de hospitais privados da sua família. A Samel administrou a unidade por uma parceria público-privada com a prefeitura de Manaus."

Muito bem, caros: acho que já deu para entender por onde passam as coisas.

A reportagem censurada informava ainda:
- que adversários recorreram à Justiça apontando abuso de poder econômico;
- a juíza que não via nada de errado na atuação de Nicolau é uma amiga... da família Nicolau!

O texto do Intercept relatou os fatos. O candidato, agora derrotado, entrou com quatro representações na Justiça não só para retirá-lo do ar. Ele queria dar sumiço no site inteiro.

Uma das petições acabou caindo na mão de um outro juiz que mantém proximidade com a Samel: Alexandre Henrique Novaes de Araújo. Ele não deu apagão no TIB, mas censurou a reportagem. Motivo alegado: "a publicação imputa fatos sabidamente inverídicos". E NÃO! ELE NÃO DISSE QUAIS ERAM OS FATOS INVERÍDICOS. Pena do eventual descumprimento: multa diária de R$ 20 mil.

Transcrevo mais um trecho da reportagem:
O juiz Araújo, que determinou a censura à reportagem, foi um dos ilustres convidados de uma festa que celebrava o aniversário de Alberto Nicolau, irmão do candidato derrotado Ricardo Nicolau. Além de principal doador da campanha do irmão (R$ 1 milhão), Alberto é também diretor-presidente do grupo Samel. O evento aconteceu no dia 21 de agosto, no último andar do prédio da Samel, o "rooftop mais disputado da cidade".

O evento tinha uma peculiaridade: Ricardo Nicolau já era pré-candidato à prefeitura de Manaus e o juiz Araújo já atuava na fiscalização da propaganda eleitoral na capital. Uma foto postada pela juíza Rebeca Mendonça em seu Instagram mostra ela e outros três magistrados, entre eles Araújo, "celebrando a vida desse querido, seu Samel".

Ricardo Nicolau está no quinto mandato como deputado estadual e já foi presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas. Antes da pandemia, o candidato derrotado não era diretor da Samel, mas passou a ostentar o título desde que se licenciou do cargo de parlamentar em abril para, nas suas palavras, se "dedicar integralmente ao combate ao coronavírus."

Outro fato, digamos, incômodo:
No site do Grupo Samel, que também atua na área de planos de saúde, é possível ver a logomarca do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas ao lado de outras marcas de planos de saúde, indicando que o convênio oferecido aos servidores do TRE é aceito nos hospitais do grupo. Nós perguntamos ao Tribunal sobre o contrato para entender melhor que tipo de serviço a Samel presta e quanto fatura, mas eles não responderam.

Bem, reitero: leiam a íntegra. Se o Conselho Nacional de Justiça não se interessar por aquilo que se passa no Amazonas, melhor cuidar apenas de assuntos celestes. Há outras ocorrências que são, para dizer pouco, insólitas.

Bem, de toda sorte, a eleição já aconteceu, e Nicolau não foi para o segundo turno. A liminar expedida pelo juiz eleitoral que proibiu a reportagem perdeu efeito. Não é assim porque eu gosto. Assim é porque é o que está escrito no Parágrafo 7º do Artigo 38 da Resolução 23.610 do Tribunal Superior Eleitoral. Transcrevo:

"Realizada a eleição, as ordens judiciais de remoção de conteúdo da internet não confirmadas por decisão de mérito transitada em julgado deixarão de produzir efeitos, cabendo à parte interessada requerer a remoção do conteúdo por meio de ação judicial autônoma perante a Justiça Comum."

Fim de papo, não? A eleição já acabou para Nicolau. A remoção não foi confirmada por decisão de mérito. Logo, os que pretendem ver o texto censurado terão agora de tentar obter da Justiça Comum essa óbvia agressão à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa.

Mas quê...

Nicolau, por intermédio da "Coligação Voltar a Acreditar", recorreu de novo à Justiça Eleitoral. Quer a supressão também da segunda reportagem e a elevação da multa diária para R$ 100 mil, além do pagamento de outros R$ 20 mil como punição pela desobediência que não houve a uma ordem judicial.

BAGUNCISMO
As coisas andam meio bagunçadas no país:
- Um juiz manda retirar do ar uma reportagem de óbvio interesse público alegando "fatos sabidamente inverídicos";
- o doutor nem tem a generosidade de informar quais são os fatos inverídicos, como se verdade e mentira fossem matérias sujeitas ao solipsismo judicial;
- o site atingido pela censura cumpre a ordem;
- ainda em cumprimento à lei -- ver resolução acima --, publica as informações censuradas porque a eleição acabou para o reclamante. Cumpre agora que ele apele, se quiser, à Justiça Comum;
- mesmo assim, ele volta à mesma Justiça Eleitoral, que deixou de ser foro competente para a questão, para solicitar nova censura, com imposição de punição adicional.

Que fique claro: o que está em questão são valores consagrados no Artigo 5º da Constituição, que é cláusula pétrea, e no Artigo 220: liberdade de expressão, liberdade de imprensa e repúdio à censura.

A matéria passou a ser de interesse do Conselho Nacional de Justiça.

Olá, ministro Luiz Fux!

É preciso, parodiando a coligação, que o país volte a acreditar... na Justiça!