Topo

Reinaldo Azevedo

Versão da Bíblia a que apela Bolsonaro fica bem para milícia e narcotráfico

Reprodução
Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/11/2020 06h52Atualizada em 19/11/2020 18h31

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Distinguimo-nos dos outros animais na maravilha e no horror. A espécie que faz as vacinas — e têm sido muitas as boas notícias nessa área — também dá ao mundo Jair Bolsonaro. Não há variação possível de resposta na natureza. A faixa em que transitam os cães, os leões e os galeopitecos, por exemplo, é certamente menor.

Os usualmente chamados bichos de uma mesma espécie podem variar em tamanho, coloração, agressividade... Mas, em essência, se parecem. Entre os humanos, a coisa é diferente. Temos inteligência. Com ela, vêm as escolhas éticas, morais. Alguns de nós estudam patógenos, criam imunizantes, salvam milhões de vidas. Outros são como Jair Bolsonaro e seu mais novo cacho político: o protoditador Vladimir Putin.

A Covid-19 voltou a ser um flagelo no Brasil. Se não estamos ainda numa segunda onda, é provável que estejamos perto. Poucos governantes no mundo ousaram opor o funcionamento da economia à salvação de vidas. Até porque não podem e não devem ser escolhas excludentes. Acontece que, ao presidente brasileiro, pouco importa a realidade, até porque não dispõe do aparelho mental e intelectual necessário para ao menos descrevê-la, ainda que pudesse ser judicioso a respeito. Sim, nós, humanos, também julgamos as coisas.

Mais do que isso. Muitos, aparentemente como nós, matam por prazer. A outros ainda, pouco importa que os de sua semelhança morram por isso e aquilo. São as tais escolhas. E Bolsonaro fez a sua, abraçado a um ódio que parece nele ser uma coisa ancestral, entranhada, incontrolável. O modelo de "masculinidade" de Putin chega a ter menos compromisso com a manutenção do poder, comum aos políticos, do que com o seu rancor ao que está fora de sua faixa de compreensão.

Bolsonaro publicou em suas páginas nas redes sociais o elogio que lhe dirigira Putin durante reunião dos chefes de estado do grupo de países identificado por Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O tirano russo, como sabem, exaltou no brasileiro as virtudes da "masculinidade".

Ao lado do elogio, Bolsonaro transcreveu o que seria o Versículo 10 do Provérbio 24, do livro dos Provérbios, do Velho Testamento. A maioria dos 31 é atribuída a Salomão.

Escreveu o capitão: "Se te mostrares frouxo no dia da angústia, sua força será pequena".

Além do erro gramatical no emprego dos pronomes, há o "frouxo".

O presidente gostou da palavra. Durante uma cerimônia de entrega de títulos de propriedade rural na cidade de Flores de Goiás, nesta quarta, ele afirmou:
"Graças a vocês [agricultores], que não pararam, nós, na cidade, continuamos sobrevivendo. Se o 'fica em casa, a economia a gente vê depois' fosse aplicado no campo, teríamos desabastecimento, fome, miséria e problemas sociais. Parabéns a vocês, que não se mostraram frouxos na hora da angústia, como diz a passagem bíblica".

Passagem bíblica? A página do Vaticano traz a tradução oficial da Bíblia em Latim, espanhol, italiano e inglês.

Em Latim:
Si fueris lassus in die angustiae, coartabitur fortitudo tua.
Se fores fraco no dia da angústia, tua força será reduzida;

Em espanhol
Si flaqueas en el día de la adversidad, ¡qué poca fuerza tienes!
Se fraquejas no dia da adversidade, que pouca força tens!

Em Italiano:
Se ti avvilisci nel giorno della sventura, ben poca è la tua forza.
Se desanimas no dia do infortúnio, bem pouca é tua força

Em inglês:
If you remain indifferent in time of adversity, your strength will depart from you.
Se você fica indiferente no tempo da adversidade, sua força saíra de você

São traduções literais. A língua em que a Igreja redige seus documentos oficiais, o latim, não permite a tradução "frouxo" para "lassus", que pode ser ainda "fatigado", "cansado", "esgotado".

É claro que "frouxo" pode ser um sinônimo de "fraco", mas não da fraqueza de que tratava Salomão, que, em Provérbios, aborda a arte moral, não a arte da guerra.

O Versículo 10 do Provérbio 24 só terá a tradução que lhe deu Bolsonaro no dia em que os milicianos da Zona Oeste publicarem a sua própria tradução da Bíblia. Ou então o misto de pastor e narcotraficante que já começou a dar as caras no Rio.

Bem pensado, meus caros, por que a mistura de Bolsonaro com a Bíblia daria certo? Afinal, trata-se de um livro que reúne muitos livros. E nós sabemos que a aproximação de tal objeto do homem que governa o Brasil pode ser considerada um atentado terrorista.