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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Utopia regressiva de Bolsonaro: controlar as redes e acabar com a imprensa

Bolsonaro faz mira com uma submetralhadora. A julgar por sua fala, o destino da bala poderia ser a liberdade de imprensa -  Reprodução/Instagram
Bolsonaro faz mira com uma submetralhadora. A julgar por sua fala, o destino da bala poderia ser a liberdade de imprensa Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

16/02/2021 06h51

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O presidente Jair Bolsonaro agora resolveu empreender uma guerra contra as redes sociais. E, claro, deu a entender que gostaria de fechar os veículos de imprensa — e disse não fazê-lo porque é um democrata. De saída: é mentira. Ele não é. E só não fecha os ditos-cujos porque não pode, não porque não queira.

Qual a razão de ele se incomodar tanto com a decisão das redes sociais de combater as "fake news" e de punir usuários que insistam na prática?

Ora, as notícias falsas estão na raiz da sua postulação à Presidência e serviram para unir a sua tropa nos dois primeiros anos de governo. Enquanto não havia nenhuma interdição às delinquências, as redes eram saudadas pela extrema-direita como o novo Éden do que essa gente entende por democracia.

O mundo acordou tarde para o fenômeno — espero que não tarde demais. As redes foram o palco privilegiado da prática nefasta que consiste em instrumentalizar as garantias do regime democrático para solapá-lo. As coisas estão ainda confusas, desordenadas. Mas há um esforço para tentar conter a depredação dos direitos individuais e coletivos que a civilização democrática construiu — e há ainda muito por fazer.

COLONIZAÇÃO DAS REDES
Mundo afora, a extrema direita liderou a colonização do espaço virtual. Convenhamos: por mais antagônicos que sejam entre si, o pensamento de esquerda e o liberal, se honestos nos seus propósitos, têm tradução difícil para as massas. O primeiro pretende construir uma economia a partir de uma fundamentação ética: a da igualdade ou da diminuição da desigualdade. O outro entende que são os postulados econômicos que plasmam uma ética -- no caso, a das oportunidades, que têm de ser iguais para todos. Um e outro já se perderam muito no caminho. O primeiro se desentendeu com a liberdade; o segundo, com a justiça social. E estão em busca de saídas.

A extrema direita não tem utopia porque, para ela, o melhor já aconteceu. A sua terra idílica é necessariamente regressiva. Daí o "fazer a América grande outra vez". No Brasil, Bolsonaro exalta os ditos bons tempos da ditadura militar, cercado por generais, e não tem pejo de dizer que sua tarefa é mais "desconstruir coisas" do que construir.

É uma pregação que conquista aliados com facilidade porque açula o ressentimento social e individual. Não fossem os inimigos, o mundo teria, então, como voltar ao paraíso perdido em que, segundo essa distopia, teria havido ordem, com cada coisa no seu lugar. Observem o tratamento que os populistas de extrema direita dispensam à ciência, por exemplo.

Os saberes que esta encerra são complexos, opondo-se, não raro, ao senso comum. Não fica difícil tomar um epidemiologista, que defenda severas restrições de convivência social, por um autoritário. As vacinas, as verdadeiras fundadoras do mundo contemporâneo, são tratadas como inimigas porque inoculariam nesse reacionário ensandecido um elemento desconhecido que ele vê como insidioso.

Querem saber? Isso não tem cura. Se as redes sociais não afinarem ainda mais os critérios para tirar de circulação a desinformação, a mentira e a apologia da violência — buscando, assim, conter a marcha da estupidez —, a chance dessa horda de zumbis provocar sortilégios ainda mais pavorosos é grande.

VOLTEMOS A BOLSONARO
Nesta segunda, o presidente resolveu vituperar contra o Facebook porque imagens que seguidores seus tentaram lhe mandar com tickets de postos de gasolina teriam sido bloqueadas. Aliados seus já foram alijados das redes ou tiveram mensagens marcadas como informações falsas. E ele está furioso.

Foi por meio das redes que Bolsonaro propagandeou o falso tratamento precoce com cloroquina e outras drogas inócuas para enfrentar a Covid-19. Elas também são o palco principal de sua pantomima negacionista e homicida. As mentiras e demonizações sórdidas que seus partidários espalharam durante a campanha eleitoral precisam de um jogo sem regras — que, então, jogo não é, mas luta de gangues em versão virtual.

Enquanto ele pôde usar a comunicação virtual para espalhar suas boçalidades — opondo, então, a sua verdade, essencialmente mentirosa, ao noticiário da imprensa profissional —, não havia, por óbvio, protestos. Ao contrário. O que ele e seus sectários faziam era antever a morte do jornalismo profissional. E, no entanto, este não morreu. E as redes, território do vale-tudo, buscam aderir, ainda que de forma incipiente e com muitas dificuldades, a critérios que se assemelham aos da imprensa livre — livre e responsável, ao menos como esforço consciente.

CONSTITUIÇÃO
E aí o tiranete disparou, segundo registra a Folha:
"Com todo respeito [...], eu sou qualquer um do povo: proibir anexar imagens a título de proteger fake news. O certo é tirar de circulação -- não vou fazer isso, porque sou democrata -- tirar de circulação Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Antagonista, [que] são fábricas de 'fake news'".

Como de hábito, o discurso nem faz muito sentido. Emendou o ataque à imprensa ao feito ao Facebook sem deixar claro o que uma coisa tem a ver com outra. Talvez tenha: as redes já não publicam o que ele quer, e o jornalismo publica o que ele não quer.

Dizer o quê? O presidente não fecha os veículos de comunicação porque a Constituição não permite. A liberdade de expressão, vedado o anonimato, está garantido em dois Incisos dos Artigo 5º da Constituição (IV e IX), que é cláusula pétrea, e no Artigo 220, que proíbe até que se legisle sobre restrições a essas garantias, na pegada da Primeira Emenda da Constituição dos EUA.

Fiquemos atentos. Há tolos, ou nem tanto, por aí que estão tomando as redes sociais como se fossem o Estado, o único a quem se pode atribuir "censura". Facebook, Twitter e afins servem ao debate público, mas são empresas privadas, que recebem associados segundo regras que elas têm o direito de estabelecer, desde que não violem a legislação.

Excluir quem espalha fake news", quem faz a apologia da violência ou quem põe em risco a saúde pública preserva direitos constitucionais em vez de agredi-los.

DOIDÃO
O reaça ficou doidão. Disse ainda:
"O governo federal, junto com o Parlamento, [tem de] criar uma legislação; taxar mais ainda esse pessoal [redes sociais], que paga muito pouco de imposto para operar dentro do Brasil; tomar medidas para realmente garantir a liberdade de expressão. Na minha página, na página de qualquer um."

Pode não parecer, mas a relação de um usuário de uma rede com a dita-cuja é um acordo entre privados para uso de um serviço. As restrições impostas aos fascistoides pelas empresas estão de acordo com os valores consagrados na Constituição. Bolsonaro continua absolutamente livre para se manifestar. Quem não pode lhe impor restrições e a ninguém, nesse terreno, fora do que autoriza a lei, é o Estado.

Não deixa de ser curioso ver o defensor da ditadura e admirador confesso de um torturador a buscar, como se diz hoje em dia, o "lugar de fala" do perseguido e do censurado.

Pois é... Se um presidente da República não puder mais usar as redes sociais livremente nem para propagandear remédios e comportamentos que podem matar, ele pode o quê? Isso cria empecilhos para que se mergulhe o país nas trevas, armado até os dentes, com todos atirando contra todos.

Conter a depredação da ordem democrática promovida pela extrema direita é a tarefa número um destes tempos. E as redes sociais estão no centro da questão.