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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Nota sobre 64 prova que Bolsonaro é incapaz também como golpista. Que bom!

Braga Netto, que faz o papelão de interventor de Bolsonaro nas Forças Armadas, e os comandantes que pediram demissão: Edson Leal Pujol (Exército), Antônio Carlos Bermudes (Aeronáutica) e Ilques Barbosa (Marinha) - Marcelo Camargo/Agência Brasil; Reprodução
Braga Netto, que faz o papelão de interventor de Bolsonaro nas Forças Armadas, e os comandantes que pediram demissão: Edson Leal Pujol (Exército), Antônio Carlos Bermudes (Aeronáutica) e Ilques Barbosa (Marinha) Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil; Reprodução

Colunista do UOL

31/03/2021 07h48

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A evidência de que Jair Bolsonaro quebrou a cara também como golpista da democracia — não me refiro a outros estelionatos — está na nota alusiva a 31 de março de 1964, assinada, desta feita, apenas pelo ministro da defesa, general Braga Netto. Em 2019 e 2020, a celebração do golpe trazia também as assinaturas dos respectivos comandantes das três Forças. Ocorre que, nesta terça, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudes (Aeronáutica) estavam na condição de demissionários.

É claro que é uma indignidade em si celebrar um movimento que rasgou a Constituição e instituiu uma ditadura no país sob o pretexto de preservar a democracia. Como costumo dizer, não se viu até agora tirania que se tenha imposto revelando seus reais propósitos. Todas elas apelam a valores elevados, escondendo suas mãos sujas de sangue. Não custa lembrar que, em seu preâmbulo, o AI-5 exalta um "sistema jurídico e político" que busca assegurar a "autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana". Sob a sua sombra, a canalha torturou e matou.

Sim, eu estava um tanto apreensivo com o que poderia sair da pena de Braga Netto, que resolveu se comportar como uma espécie de interventor de Jair Bolsonaro no alto-comando das três Forças. Acreditem: o que os próprios militares pensam a respeito de seu papel não é melhor do que pensa este articulista, que não é militar. E olhem que não pertenço a nenhuma corporação que tem a hierarquia como pilar. Mas volto à nota.

Sim, é verdade, o texto de Braga Netto carrega a indecência inata de celebrar um golpe, chamado de "movimento", mas é menos pretensioso e até mais manso do que aqueles que vieram à luz em 2019 e 2020, conforme vocês podem ver abaixo. Mas que se note: não se vivia, então, uma efervescência golpista, e o presidente era mais discreto ao se comportar como as "vivandeiras alvoroçadas" que vão aos "bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar", para lembrar a frase com que Castello Branco premiou o golpismo renitente no país.

Desta feita, sim. Ainda nesta terça, em uma de suas extravagâncias, Bolsonaro apelou ao deputado Victor Hugo (GO), líder do PSL na Câmara, para tentar emplacar o "estado de mobilização", previsto no Inciso XIX do Artigo 84 da Constituição para a hipótese de haver uma declaração de guerra em caso de agressão estrangeira. A tese está à altura da estupidez bolsonariana: como o país está em guerra contra o vírus, então haveria a licença constitucional. Parece piada, mas é verdade.

Quero, no entanto, me fixar na nota. Ela segue em vermelho, com comentários meus em azul..

MINISTÉRIO DA DEFESA

Ordem do Dia Alusiva ao 31 de março de 1964

Brasília, DF, 31 de março de 2021

Eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época.
Sempre que alguém diz que um determinado evento deve ser visto em seu contexto, não tenho nada a objetar. Pode-se dizer o mesmo do desembarque na Normandia ou de um pedaço de pizza. Também as notas anteriores faziam, vamos dizer assim, um certo apelo à nossa compreensão. Ademais, tirado o contexto, então o evento perde significado, não é mesmo? Como não estamos em 1964 nem somos soldados de Tio Sam contra o comunismo, então melhor é mudar de assunto.

Ah, sim: se eu decidir entrar no contexto, é evidente que o golpe não se justifica. Mas o meu interesse por aquilo que pensa Braga Netto sobre 1964 é muitas vezes inferior a zero. Eu não o quero é apontando os tanques contra o atual contexto...

O século XX foi marcado por dois grandes conflitos bélicos mundiais e pela expansão de ideologias totalitárias, com importantes repercussões em todos os países.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo, contando com a significativa participação do Brasil, havia derrotado o nazifascismo. O mapa geopolítico internacional foi reconfigurado, e novos vetores de força disputavam espaço e influência.

A Guerra Fria envolveu a América Latina, trazendo ao Brasil um cenário de inseguranças com grave instabilidade política, social e econômica. Havia ameaça real à paz e à democracia.
Essa mistura de história com sociologia, redigida nos joelhos, já estava nas notas de 2019 e 2020. Diria até que a versão de agora é um pouco menos pretensiosa do que as anteriores. O que nem o texto de agora nem os anteriores explicam é por que o Estado brasileiro precisou se tornar criminoso para combater, então, a tal "ameaça real à paz e à democracia". Nem poderia. O que se queria era uma ditadura, e a "paz e a democracia" eram apenas a vestimentas virtuosas que a ditadura pretendeu envergar.

Os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964.

As Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos.
Sim, esses setores, na sua maioria, apoiaram o golpe. E não! As liberdades democráticas de que hoje desfrutamos são o resultado daqueles que lutaram pela redemocratização do país, não dos que praticaram a quartelada.

Em 1979, a Lei da Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional, consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia. Foi uma transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo. O País multiplicou suas capacidades e mudou de estatura.
Essa nota, a exemplo das duas anteriores, evoca a Lei da Anistia como um fator de pacificação do país. Logo, presidente Jair Bolsonaro, isso descarta novas aventuras, não é mesmo? Anistia, para efeitos jurídicos, é esquecimento. Mas ninguém deve apagar da história e da memória o que se deu.

Não estamos em 1964 nem vivemos a Guerra Fria. Mesmo, então, para a sociologia canhestra com que se tenta justificar uma quartelada, inexistem as circunstâncias em que os tanques devem abrir o caminho do golpismo e interditar o da democracia.
O cenário geopolítico atual apresenta novos desafios, como questões ambientais, ameaças cibernéticas, segurança alimentar e pandemias. As Forças Armadas estão presentes, na linha de frente, protegendo a população.

A Marinha, o Exército e a Força Aérea acompanham as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a Pátria, garantir os Poderes constitucionais, e seguros de que a harmonia e o equilíbrio entre esses Poderes preservarão a paz e a estabilidade em nosso País.

O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março.

WALTER SOUZA BRAGA NETTO

Ministro de Estado da Defesa
Braga Netto que tente convencer o seu chefe de que, por exemplo, as questões ambientais têm hoje centralidade na geopolítica internacional.

Hein? Os acontecimentos de 1964 devem "ser compreendidos e celebrados" como parte da trajetória histórica do Brasil? Há uma coisa positiva aí, não? O general está dizendo que golpe — que ele chama "movimento" — é coisa do passado. Não o diz, tudo indica, por gosto, mas porque não há alternativa. A aventura golpista falhou. E o general pôs as suas digitais na patuscada, como sabem os seus pares.

Felizmente, a tentação putchista não encontrou parceiros, daí o tom, vamos dizer, retrô da nota.

Claro, só celebram golpes aqueles que são golpistas — ainda que se refiram a eventos pretéritos. A despeito dessa postura, essencialmente indigna para os padrões democráticos, essa nota é a evidência de que Bolsonaro falhou no seu intento. Deveria receber do Congresso a resposta adequada: impeachment.

Ocorre que as duas notas anteriores não são melhores do que essa. Para ser rigoroso, são piores. A de 2019 é, na extensão, a "Guerra e Paz" do trololó "contextualista". E isso prova que, também como golpista, Bolsonaro é um incompetente.

Uma incompetência que deve ser excepcionalmente celebrada.


LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DE 2020
Brasília, DF, 31 de março de 2020.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época.

O entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos. O início do século XX foi marcado por duas guerras mundiais em consequência dos desequilíbrios de poder na Europa. Ao mesmo tempo, ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias. O nazifascismo foi vencido na Segunda Guerra Mundial com a participação do Brasil nos campos de batalha da Europa e do Atlântico. Mas, enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários.

Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil. Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.

A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis.

Aquele foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram. Entregaram-se à construção do seu País e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam. O Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo.

A Lei da Anistia de 1979 permitiu um pacto de pacificação. Um acordo político e social que determinou os rumos que ainda são seguidos, enriquecidos com os aprendizados daqueles tempos difíceis.

O Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios. As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas.

As Forças Armadas acompanharam essas mudanças. A Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade.

Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos, ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou.

FERNANDO AZEVEDO E SILVA
Ministro de Estado da Defesa

ILQUES BARBOSA JUNIOR
Comandante da Marinha

EDSON LEAL PUJOL
Comandante do Exército

ANTONIO C. M. BERMUDEZ
Comandante da Aeronáutica

LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DE 2019
As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15.

Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano - a capacidade de aprender.

Desde o início da formação da nacionalidade, ainda no período colonial, passando pelos processos de independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo republicano, o País vivenciou, com maior ou menor nível de conflitos, evolução civilizatória que o trouxe até o alvorecer do Século XX.

O início do século passado representou para a sociedade brasileira o despertar para os fenômenos da industrialização, da urbanização e da modernização, que haviam produzido desequilíbrios de poder, notadamente no continente europeu.

Como resultado do impacto político, econômico e social, a humanidade se viu envolvida na Primeira Guerra Mundial e assistiu ao avanço de ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico. Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia.

Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados. Em 1935, foram desarticulados os amotinados da Intentona Comunista. Na Segunda Guerra Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária Brasileira, nos campos de batalha da Itália; e da Força Aérea Brasileira, nos céus europeus.

A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos brasileiros, voltaria a ser testada no pós-guerra. A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950.

O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo.

Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.

As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas.

Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.