Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Pacheco tem de exigir a demissão de assessor. Ou começa a se desmoralizar
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Errarão todos aqueles que, em algum momento, apostarem que este governo e seus próceres já chegaram ao limite da delinquência intelectual e política. Eles sempre podem mais. O episódio protagonizado por Filipe Martins, nesta quarta, no Senado, seria espantoso não fossem "eles" quem e o que são. Martins é assessor especial da Presidência para assuntos internacionais. Se Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, deixar pra lá, estará maculando a sua autoridade. E vai se transformar num dos alvos permanentes da política do ódio. Ainda voltarei a este ponto.
O FATO
Rememoro o ocorrido. Ernesto Araújo, o nosso chanceler (Deus do Céu!), era ouvido no Senado sobre a atuação do Brasil junto a outros países para tentar comprar vacinas. Araújo é o extremo da ruindade entre todos os ministros de Bolsonaro. Nem Ricardo Salles (Meio Ambiente) lhe arranca o galardão, lembrando que a dupla está hoje na vanguarda da degradação da reputação do Brasil no exterior.
Pré-Covid, o mundo já tratava o país com um misto de chacota e incredulidade. Depois da pandemia, há também aversão e medo. São, no entanto, os dois ministros do coração de Bolsonaro. Eles são capazes de dar alguma fluência aos garranchos morais do chefe.
O GESTO
Araújo foi bastante criticado pelos senadores, e alguns pediram abertamente a sua renúncia. Martins o acompanhou ao Senado e sentou-se atrás de Pacheco. Quando o presidente do Casa falava, o tal "assessor especial", discípulo de Olavo de Carvalho e voz do extremismo de direta no governo, houve por bem fazer um gesto repetitivo com a mão direita.
Uniu o polegar ao indicador, esticou os outros três dedos e deslizou várias vezes a mão sobre a aba do paletó, com o olhar fixo em algum ponto à sua frente, como se estivesse se comunicando com alguém. No Brasil, todos sabem, isso quer dizer "vai tomar no monossílabo tônico em 'U' e sem acento". A coisa já seria de extrema gravidade porque um assessor direto do presidente do Poder Executivo estaria agredindo a autoridade do Presidente do Poder Legislativo dentro do Senado. Vejam vídeo ao pé do texto.
SINAL NO MUNDO
Martins é certamente menos sábio do que supõe. Era um prosélito de extrema direta das redes sociais até 2018. No ano seguinte, assessorava o presidente da 9ª economia do mundo -- que Bolsonaro já empurrou para o 12º lugar. Ainda assim, uma posição de prestígio.
É praticamente impossível que ele ignore — dadas suas citações e contatos no universo da extrema direita — ser aquele o símbolo dos supremacistas brancos. E assim é nos EUA e onde quer que eles se manifestem. Martins chegou a morar com a família por um ano e meio em Port Elizabeth, na África do Sul. O gesto, entre os extremistas, representa as letras "W" e "P": "White Power".
OS ANTECEDENTES
"Ah, isso é pura ilação. É só um vai tomar caracu". Bem, de todo modo, seria inaceitável, certo? Quanto à hipótese de Martins estar evocando o movimento supremacista, dizer o quê? Há, quando menos, coincidências que não podem ser ignoradas.
Brenton Tarrant, o australiano que matou 51 pessoas em ataques a tiros a duas mesquitas na Nova Zelândia, no dia 14 de março de 2019, fez o gesto que Martins repetiu no Senado ao ser fotografado ao lado de dois policiais. Atenção! Tarrant filmou a ação. Documentou o próprio crime. E ainda deixou um manifesto.
Esse manifesto — abjeto — começa, no entanto, com um poema de Dylan Thomas, que, obviamente, foi mal usado por um facínora. Não guarda relação nenhuma com o assassinato das 51 pessoas nem com as coisas bárbaras ditas pelo terrorista. O texto é conhecido por seu primeiro verso: "Do not go gentle into that good night".
Pois é. Pouco mais de um mês após o massacre, Martins resolveu renovar a imagem do seu perfil no Twitter. Com tantos poemas à disposição, ele também resolveu homenagear Dylan Thomas e mandou brasa, apelando ao mesmo poema: "Do not go gentle into that good night".
O texto de Dylan Thomas, note-se, é espetacular e nada tem a ver com os delírios da extrema direita. Talvez os facinorosos busquem nele uma espécie de sentido de resistência, própria de quem estaria em luta contra a decadência do mundo. Como sabemos, esses patriotas se consideram uma espécie de tropa de restauração da verdade de um passado idílico. Sem essa estupidez, não há reacionarismo.
DE VOLTA AO PONTO
Se Martins citava Tarrant antes ou agora, bem, é preciso que se apure. Duas coisas são certas: o australiano assassino filmou o massacre que ele próprio perpetrou. E Martins, por óbvio, sabia que estava sendo filmado.
"Ah, ele seria tão idiota de fazer o gesto, se um recado fosse, sabendo que as câmeras registravam tudo?" A pergunta pode não ser relevante. Depende do que se quer com o gesto. Se o objetivo era desmoralizar o presidente do Senado — que já caiu em desgraça na rede bolsonarista porque defensor da máscara e do distanciamento social; até mesmo do lockdown onde necessário —, então não se tem um flagrante involuntário, mas uma senha.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) interrompeu a sessão e cobrou, com muita veemência, que Martins fosse retirado da sessão pela Polícia Legislativa. E acho que estava certo. Acabou não acontecendo, embora Pacheco tenha encomendado a abertura de investigação. Martins chegou a reivindicar mais alguns minutos de fama para responder a Randolfe, mas o tempo não lhe foi concedido.
VAI PROCESSAR TODO MUNDO
Martins é notavelmente agressivo. No Twitter, atacou:
"Um aviso aos palhaços que desejam emplacar a tese de que eu, um judeu, sou simpático ao 'supremacismo branco' porque em suas mentes doentias enxergaram um gesto autoritário numa imagem que me mostra ajeitando a lapela do meu terno: serão processados e responsabilizados; um a um".
Bem, o vídeo segue abaixo. Pode-se dizer que cada um tem seu próprio modo de "ajeitar a lapela do terno". O de Martins, seja ele judeu ou não, parece ser mesmo bastante peculiar.
DE VOLTA A PACHECO
Há uma questão que é de natureza política e diz respeito ao presidente do Senado. Se vai mesmo exercer um papel relevante no tal Comitê criado para combater a Covid-19 ?-- contando, inclusive, com a delegação do presidente da República para certas tarefas --, tem de exigir a demissão de Martins.
O "modo de ajeitar a lapela", não há alternativa, precisa ser investigado. Se o assessor estava mandando o presidente do Senado tomar caracu, naquelas circunstâncias, tem de ser processado. Se aludia ao gesto supremacista, idem. Sim, por óbvio, um eventual inquérito, se aberto, não daria em nada.
O que eu digo? Pacheco tem de exigir sua demissão. Quando menos para que o "professor" — como ele é chamado; mais um... — aprenda a ajeitar a lapela do paletó com mais decoro.
ENCERRO
Pacheco que se cuide: ele já virou alvo das milícias digitais. Se não se impuser, será tragado pela súcia. Sabem como é... Ele tem ousado sugerir que o combate à pandemia obedeça aos critérios da ciência.
Uma das primeiras lições dadas mundo afora pelos gurus de extrema-direita é a normalização do ataque às autoridades consideradas incômodas, até que sejam desmoralizadas. De preferência, em seu próprio ambiente. Isso estava na raiz das manifestações contra o Supremo e o Congresso ao longo de 2019 e parte de 2020, lideradas pelo próprio Bolsonaro. Foi o que se viu com a invasão do Capitólio nos EUA. O gesto de Martins tem esse sentido? Que se investigue. Uma coisa é certa: o Parlamento tem de tomar a decisão política de se defender desse processo de depredação.