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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Dominghetti na CPI: Por que ver Tarkovski 5ª à tarde. Ou: "Rouba e não faz"

Luiz Paulo Dominguetti Pereira na CPI: ele chegou com mais facilidade à cúpula do Ministério da Saúde do que a Pfizer, que teve de penar para vender vacinas reais ao Brasil - Rafaela Felicciano/Metrópoles
Luiz Paulo Dominguetti Pereira na CPI: ele chegou com mais facilidade à cúpula do Ministério da Saúde do que a Pfizer, que teve de penar para vender vacinas reais ao Brasil Imagem: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Colunista do UOL

02/07/2021 04h37

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Ao longo desta quinta-feira, os aflitos se espantavam nas redes: "Apertem o cinto; o roteirista fugiu". Assistia-se a cenas do mais explícito surrealismo, mas não daquelas cujo significado a gente fica com vontade de desvendar. Não! Nada ali fazia sentido. Era uma personagem impossível, engrolando incongruências, contando o improvável — que, em parte ao menos, tinha inequivocamente acontecido —, enquanto os telespectadores se perguntavam: "Meu Deus, mas o que isso quer dizer?" Outro desistiu: "Vou ver 'Stalker', de Tarkosvki. Quero coisas que façam sentido". Quem poderia culpá-lo?

Sim, a reportagem da Folha informou o que aconteceu e o que o tal Luiz Paulo Dominghetti Pereira, um PM de Minas, diz ter acontecido.

O que aconteceu? Ele, de fato, esteve com figurões da Saúde — entre eles, Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística — em um jantar num restaurante de Brasília e em reunião no Ministério para tratar da venda de supostos 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca.

O que ele diz ter acontecido, sendo que o acusado nega? Dias teria proposto que se acrescentasse US$ 1 a cada dose, oferecida a US$ 3,50. E a pasta estaria disposta, segundo entendi, a comprar 200 milhões — a propina seria, portanto, de R$ 1 bilhão.

Ocorre que, desde que a história veio a público, havia um dado estupefaciente: a AstraZeneca não vende vacinas para empresas privadas. E, pois, não havia como o cabo da PM lotado em Alfenas ser o portador de uma oferta crível. Também ficou evidente, de cara, que a tal Davati Medical Supply não teria como ser a negociadora de um troço daquela dimensão. Os 400 milhões de doses ofertados imunizariam todos os brasileiros em idade de receber a vacina — sim, com as duas doses. E ainda sobrariam frascos.

Daí a opção desesperada por Tarkovski logo antes do almoço de quinta. De quebra, sabe-se lá instruído por quem, o tal Dominghetti resolveu assacar um áudio em que o deputado Luís Miranda fala com alguém sobre a compra de alguma coisa. O cabo de Alfenas tentou fazer com que os senadores acreditassem que Miranda, que denunciou malandragem na compra da Covaxin, estava negociando vacinas. Deveria ter sido preso ali.

A propósito: o que ele fazia ali? Mas como não convocá-lo? Afinal, ele fazia uma acusação direta a um destacado diretor do Ministério da Saúde, que já andava na mira da CPI, e, com efeito, havia transitado pela pasta com a oferta de vacinas debaixo do braço.

Ocorre que a a Davati nunca teve o imunizante para vender. É de se duvidar se a empresa, um galpão vazio, realmente existe. Dominghetti se diz seu representante, embora um tal Herman Cardenas, identificado como dono, negue. A reportagem da Folha tem em mãos os e-mails indicando que a negociação aconteceu. E que, sim, o tal cabo era o negociador do que não existia.

Por que o Ministério da Saúde não procurou saber o que era a Davati?

Por que o Ministério da Saúde não falou com a Fiocruz, parceira da AstraZeneca no Brasil?

Por que o Ministério da Saúde não falou com a própria farmacêutica AstraZeneca?

Por que o Ministério da Saúde, na pessoa de Dias, marcou um almoço para tratar do assunto?

Por que o Ministério da Saúde não procurou saber quem era Dominghetti?

Talvez alguma outra coisa explique o ocorrido que não o vislumbre de uma janela de oportunidades para uma falcatrua bilionária, mas, convenham, dado o conjunto da obra, a mais estrambótica das coisas parece a mais plausível: tentou-se arquitetar uma compra, que renderia uma propina fabulosa, de quem nem mesmo tinha a vacina para vender.

E este é o ponto central da história sem sentido: o Ministério da Saúde vive tal estado de desordem que tudo por ali é possível.

Ontem, aliás, veio à luz outra história do balacobaco. Uma tal Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), entidade evangélica comandada pelo reverendo Amilton Gomes de Paula, saiu a oferecer em março vacinas da AstraZeneca e da Janssen para estados e municípios.

Adivinhem! O influente reverendo, que tem fotos ao lado de patriotas como Flávio Bolsonaro e Carla Zambelli, foi parar no Ministério da Saúde. E estava escoltado por quem? Acertou quem chutou "Dominghetti".

Contrastem a velocidade com que pessoas deste "jaez", como diria uma antiga professora de Português, chegava à cúpula do ministério com a dificuldade para comprar as vacinas da Pfizer, por exemplo.

Também isso explica os mais de 520 mil mortos.

Parecia impossível, mas hoje é o mais provável: tentaram cobrar propina de picaretas que nem tinham a vacina — ou usá-los para assaltar o Estado brasileiro.

É a versão aggiornada de um velho mal brasileiro. Inaugura-se o "Rouba e não faz".

Rouba e não vacina.

'Bora ver "O Espelho".