Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Mentiras de Bolsonaro são crimes. Ele ignora sentido de "indício". E Aras?
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Aquilo a que se viu nesta quinta, tendo Jair Bolsonaro como protagonista, foi de tal sorte ridículo que quase nos esquecemos de que estava cometendo crimes.
Como se viu, não tem nenhuma prova de fraude nas eleições de 2014 ou de 2018. O que ele tem em mãos é uma teoria furada, inventada por um lunático, que se assenta, de resto, em dados errados. Vale dizer: a hipótese já é, por si, fraudulenta. E os números que a alimentam não valem. E daí? Lá estava ele, na sua live-coletiva, sem direito a perguntas, escoltado por dois representantes do Partido Militar: os generais Augusto Heleno, chefe do GSI, e Luiz Eduardo Ramos, agora na Secretaria-Geral da Presidência.
O evento, marcado para ser o "Dia D" das provas, foi um fiasco, mas certamente um sucesso para aqueles apelidados de "gado" nas redes sociais -- apelido que, note-se, seus seguidores assumiram de bom grado. A frase-símbolo da patuscada poderia ser esta:
"Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Crime se desvenda com vários indícios"
Creio que seja o que conseguiu aprender de alguma aula rápida que André Mendonça, ex-ministro da Justiça, e Anderson Torres, o atual, também ali presente, tentaram lhe soprar no vácuo entre as orelhas.
O Código de Processo Penal abriga desde 1941 o Artigo 239, que define:
"Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias."
Então cabe a pergunta: onde estão as "circunstâncias conhecidas e provadas"? Onde estão as provas indiciárias? E a resposta óbvia é esta: em lugar nenhum. Há a teoria amalucada da suposta alternância na liderança de votos entre Aécio e Dilma, com uma constância que seria impossível, e palpiteiros da Internet que dizem ter quebrado o código-fonte das urnas. A primeira afirmação é mentirosa: a tal alternância, numa constante, não existiu. E a segunda já se mostrou muitas vezes fraudulenta.
DESASSOMBRO PARA A MENTIRA
Ocorre que Bolsonaro conta mentiras com desassombro impressionante. Sustenta, por exemplo, que a apuração das urnas eletrônicas é secreta. Não é. De cada uma delas sai um boletim impresso, que é público. Os aparelhos não são ligados à Internet e ficam devidamente lacrados. Antes do início da votação, emite-se uma espécie de boletim, verificável, evidenciando que as urnas estão zeradas.
Bolsonaro fez outra afirmação escandalosamente falaciosa:
"Será que esse modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Me apresente provas [de que] não é fraudável".
Nem se trata de afirmar aqui que caberia a ele apresentar as provas ou indícios de fraude, já que é aquele que alega. Mas deixemos esse rigor de lado. O sistema já foi submetido a testes. Mais: há mecanismos de verificação que, então, provam que as urnas são invioláveis. Ocorre que Bolsonaro não aceita os fatos. Assim como não admite que as drogas que propagandeia como tratamento preventivo contra a Covid-19 são ineficazes. Sempre viveu numa realidade paralela. E nela continua.
O cerne na teoria matemática, que sustenta a acusação infundada de fraude, é um delírio de um sujeito conhecido por fazer acupuntura em plantas usando pregos em lugar de agulhas. Ele jura que funciona. Bolsonaro arrumou um coronel da reserva — sempre o Partido Militar — para vocalizar a bobajada.
CRIMES
Tudo foi de um ridículo tão atroz que tendemos a nos esquecer de que crimes estavam sendo cometidos ali. O presidente não está apenas pondo em dúvida o sistema eleitoral -- "Será que...?" Não! Ele assevera a existência de duas fraudes, leva muita gente a acreditar que dois tribunais -- TSE e STF -- participam de um complô para fraudar a vontade do eleitor e acusa essa conspiração de beneficiar um candidato: no caso, Lula. O mesmo que, ora vejam, o derrotaria por larga margem se a eleição fosse hoje.
Mais cedo, antes da live, o presidente já havia acusado, aí abertamente, o STF de ter agido em favor do petista para elegê-lo presidente da República. E, até agora, o procurador-geral da República olha para o outro lado.
CONVOCAÇÃO PARA PROTESTOS
É claro que Bolsonaro sabia não ter nada em mãos. Com a anúncio, quis apenas usar uma audiência ampliada para convocar pessoas para a manifestação em favor do voto impresso neste domingo. Ali estava mobilizada parte da estrutura do governo federal, com transmissão pela TV Brasil, para propagandear uma tese que não é de interesse público. Empregava a máquina para atender a interesses pessoais do mandatário: improbidade administrativa na veia.
A degradação a que está submetido o Estado brasileiro não tem precedentes. Anderson Torres estar presente é um escracho. Ainda que a PF seja independente, subordina-se administrativamente à Justiça. A mesma PF que jamais conseguiu encontrar indício de fraude. A presença de Augusto Heleno, a quem está subordinada a Abin, faz supor que a área de Inteligência possa estar ligada a teorias lunáticas, que agridem as instituições.
Bolsonaro queria vender seu peixe podre. Ampliou a convocação, atraiu as atenções, contou mentiras em penca e, assim, tenta garantir sobrevida à PEC do voto impresso. "Mas voto impresso para quê?" Para que, se derrotado, ele se dê por vencido? Obviamente, não. A reivindicação só faz sentido se, diante de números adversos, ele procurasse judicializar a apuração, não os reconhecendo, pedindo a recontagem urna por urna, o que impediria a proclamação do resultado.
A sua postulação, pois, se assenta, de saída, em duas declarações de má-fé:
1: se ele não vencer, é sinal de que houve fraude;
2: não vencendo, só aceita a apuração do voto impresso.
CONCLUO
O encontro serviu também para que ele anunciasse à imprensa que, a seu juízo, faz o melhor governo da história do Brasil. E, se mais não faz, é porque os outros Poderes não deixam. Além, claro, de atacar Lula.
Neste sábado, Bolsonaro completa dois anos e sete meses de governo. Ameaça o país com a não realização de eleições, no 33º ano do voto direto depois do fim da ditadura, e se volta a especular sobre golpe.
E lá estavam os representantes do Partido Militar a lhe dar suporte.
Braga Netto não deve ter comparecido só por um inesperado gesto de delicadeza institucional.
Onde está Augusto Aras?
Processando colunista de jornal.