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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

REVOLUÇÃO (DE)LIRIANA: Que Senado ponha um limite ao "Bolsonero" da Câmara

Arthur Lira, presidente da Câmara: deputado comanda Casa como autocrata e quer impor reformas que ninguém discutiu ou mesmo entendeu. Volta de coligações em eleições proporcionais seria uma aberração - Getty Images
Arthur Lira, presidente da Câmara: deputado comanda Casa como autocrata e quer impor reformas que ninguém discutiu ou mesmo entendeu. Volta de coligações em eleições proporcionais seria uma aberração Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/08/2021 04h11

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A Câmara aprovou ontem, em primeira votação, por 339 a 123, o texto-base da reforma eleitoral, que é o samba-do-deputado-doido. Resta às pessoas que ainda juntam lé com lé e cré com cré torcer para que o Senado rejeite essa estrovenga — o desejável — ou não vote a porcaria a tempo de valer para as eleições do ano que vem.

O arranjo, relatado pela deputada Renata Abreu (Podemos-SP), é uma mixórdia de lobbies, sem espinha dorsal, que não aponta para lugar nenhum. A não ser para mais confusão. A barafunda é tal que a proposta previa o horrendo e antidemocrático distritão — seriam eleitos os deputados mais votados, independentemente da quantidade de votos das legendas, o que desmoraliza os partidos — e a volta das coligações proporcionais, que favorece a multiplicação de legendas de aluguel. Pensem bem: se, pelo distritão, elegem-se os mais votados e ponto final, como é que se iriam fazer as coligações?

Arthur Lira (PP-AL), que comanda a Câmara como um César atravessando o Rubicão — ou como um Nero (que não pôs fogo em Roma) impondo aos súditos a sua música —, manobrou a pauta e antecipou para ontem a votação, que estava prevista para esta quinta. Num acordo entre os líderes, aprovou-se o texto-base para que então se procedesse à votação dos destaques, que realmente vão dar a cara final ao texto que seguirá para o Senado.

O malfadado distritão acabou rejeitado por 423 votos a 35. Sabem o que isso significa, com placar tão avantajado? Que se tratava apenas de um bode na sala. O que boa parte queria mesmo era a volta das coligações nas eleições proporcionais, que foram extingas em 2017 e passaram a valer a partir das eleições municipais do ano passado. Esses arranjos são ninhos de velhacarias. Partidecos se juntam a legendas maiores, juntam seus votos para formar o quociente eleitoral, e se elegem os que têm mais votos no grupo. Estimula-se a multiplicação de partidos que vivem do Fundo Eleitoral e que depois cobram compensações das legendas maiores em cargos na máquina pública.

Vale dizer: ficamos de olho no distritão quando o que se tramava mesmo era a volta das coligações proporcionais. A aberração foi aprovada por 333 a 149. Trata-se de um retrocesso evidente. Nesta quinta, está prevista a votação da formação de federação de partidos. Nanicos se juntariam para escapar da cláusula de barreira. Se passar, mais um incentivo ao baguncismo partidário.

A REBIMBOCA DA PARAFUSETA
Renata Abreu também incluiu em seu texto uma charada grega, escrita em etrusco arcaico, para eleger chefes dos Executivos sem o auxílio do segundo turno. Cada eleitor votaria em cinco nomes, em ordem de preferência. Se o primeiro não obtivesse maioria absoluta, haveria uma redistribuição incompreensível dos votos dados aos demais, até que se chegasse ao nome do eleito. Desafio a relatora a escrever uma redação inteligível sobre o que ela pretendeu com o troço. Segundo o acordo firmado para votar o texto-base, isso será rejeitado no destaque.

Como, parece, o objetivo era mesmo ressuscitar as coligações proporcionais, a relator incluiu uma medida, digamos, afirmativa: votos dados a negros e mulheres têm peso duplo na distribuição de verbas públicas para os partidos. Aí a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), esse ser iluminado que hoje habita Brasília, achou que assim não ficava bem. Tinha inúmeros caminhos para contestar a ideia. Um, bastante razoável, seria dizer que o voto nasce de indivíduos que são iguais perante a lei e que a legislação não pode desigualar o peso do seu voto. Medida afirmativa que imponha um mínimo de pluralidade às legendas é coisa distinta.

Mas sabem como é o ser iluminado... Carla tentou convencer seus pares de que os homens e os brancos não podem ser discriminados.... Afirmou com a sem-cerimônia que ela sempre tem ao pensar:
"No momento em que a gente coloca isso na Constituição e principalmente no momento em que a gente dá um peso diferente ao voto da mulher e ao voto do negro, a gente está discriminando quem não é negro, quem não é mulher. Estamos discriminando os brancos, as outras minorias, eventualmente, outras pessoas, e estamos discriminando os homens".

Nem numa Câmara capaz de tentar ressuscitar as coligações proporcionais ela conseguiu emplacar seu argumento, refinado nos mais sofisticados salões da Academia Bolsonarista de Pensamento. Seu destaque para excluir esse item do texto foi rejeitado por 352 a 97. Nem Jesus Cristo sobrevive a maus argumentos. Imaginem uma tese de Zamebelli...

OUTRA GRAÇA
Há uma outra graça no texto, que já nasceria morta: decisões do TSE ou do STF que afetassem as regras eleitorais só teriam validade se tomadas um ano antes do pleito. É de tal sorte estúpido que chega a dar preguiça. Tribunais não fazem leis, mas as interpretam quando acionados.

Ora, digamos que os juízes cheguem à conclusão de que pode haver uma ilegalidade ou uma inconstitucionalidade num determinado dispositivo. Então dariam o seu voto, mas aquilo que entenderam ser a correta aplicação do texto legal não poderia ser aplicado. Ora, tal decisão não teria justamente o fito de buscar a Justiça? Renata Abreu pretende que uma Lei Eleitoral possa estar acima do crivo da Judiciário e, eventualmente, da Constituição.

Bem, dizer o quê? Se isso fosse aprovado pelo Congresso, seria considerado inconstitucional pelo Supremo porque se trataria de uma invasão obvia da competência de um Poder sobre o Outro. É uma sandice.

REVOLUÇÃO (DE)LIRIANA
Sem conseguir conter o golpista do Planalto, Lira parece disposto, ele também, a ser uma espécie de Bolsonaro do Congresso. Há um outro projeto, este relatado pela deputada Margarete Coelho -- que fez um bom trabalho no caso do fim da Lei de Segurança Nacional -- que muda de cabo a rabo a legislação eleitoral. E tudo com pouco debate e transparência.

Se a deputada Renata Abreu, no seu texto, quer dar peso dois na distribuição de fundos públicos a votos dados a mulheres e negros — o que desiguala os cidadãos —, este outro enfraquece as exigências, para os partidos, de cotas para candidaturas de mulheres e negros!!! Aí, sim: como entes públicos, é razoável que se exija dos partidos o estímulo à participação de minorias — tomado aqui o termo na acepção sociológica.

Mais: o projeto estabelece censura a pesquisas eleitorais, que poderiam ser publicadas apenas até a antevéspera da eleição. Para vocês terem uma ideia: o texto de Margarete tem 372 páginas e nada menos de 902 Artigos. Seria mais fácil decorar os 250 da Constituição e suas 114 Disposições Transitórias, num total de 364 — 37,4% da fúria legiferante de Lira e Margarete.

"Ah, não seja injusto! Ela está juntando e substituindo uma batelada de leis". Ah, não sou!

É um acinte que se imagine que se pode enfiar goela abaixo da população 972 artigos conhecidos por ninguém. Sem o devido debate público. Que o Senado se encarregue de pôr um ponto final a essa farra.

Ah, sim: censurar pesquisas agride o Artigo 5º da Constituição. Ponto.