Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Os governadores e uma pergunta a Lira: existe cota secreta de cadáveres?
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O governador João Doria teve de afastar das funções um coronel da PM, que comandava cinco mil homens armados, e que se comportava nas redes como um militante político. Bolsonarista fanático, ele convocava os pares para a manifestação de Sete de Setembro, atacava o presidente do Senado, desqualificava o Supremo, agredia o próprio governador. E estamos falando aqui de uma PM, no geral, profissionalizada, menos porosa a coisas dessa natureza.
Doria agiu com correção e presteza. Mas isso é apenas um dado de um quadro bem mais preocupante.
A verdade é que os governadores estão com receio do que possa acontecer no dia Sete de Setembro. "Ah, isso quer dizer que Bolsonaro, então, está forte, né?" Não! Isso quer dizer que ele está, a cada dia, mais fraco e isolado, mas que mobiliza, sim, uma seita de extremistas. Ela é minoritária? É claro que sim. Mas quantos malucos são necessários para provocar um grande estrago?
MOVIMENTO ARMADO?
Basta passear um pouco pelas redes para perceber que há pessoas que se dizem dispostas a ir armadas para os "protestos" -- e como Bolsonaro facilitou o porte de arma, não é mesmo!? Todos os quarteis do país são, hoje, alvos do proselitismo bolsonarista. Os contingentes policiais são claramente incentivados a se rebelar contra os governadores, de modo a reconhecer no presidente da República a única autoridade.
O que temem de imediato os chefes dos Executivos estaduais? Que eclodam situações de violência que não encontrarão a resposta adequada das respectivas PMs — que Bolsonaro quer ver como sua milícia fardada. Lembrem-se do que aconteceu no Ceará em fevereiro de 2020, com o motim que quase matou o senador Cid Gomes (PDT). Mais recentemente, em 29 de maio, a PM de Pernambuco reprimiu de modo estúpido, boçal, uma manifestação em favor do impeachment. As cenas de violência foram grotescas. E não partiram do governo do Estado.
REUNIÃO E CARTA
Ontem, 25 governadores se reuniram para tratar da crise. Estavam no Palácio do Buriti, sede do governo do DF, Ibaneis Rocha (MDB), que coordena o Fórum de governadores, e Wellington Dias (PT), do Piauí. Os demais falaram à distância, de seus respectivos Estados. Os dois ausentes, sem nem mandar representantes, foram Mauro Carlesse (PSL), do Tocantins, e Wilson Lima (PSC), do Amazonas.
A ideia inicial era redigir um documento repudiando as agressões ao Estado de direito praticadas pelo presidente, destacando o mal que isso vem fazendo ao país. Mas alguns ali não se sentiram à vontade para peitá-lo. Com uma coisa todos concordaram — uma proposta de Helder Barbalho (MDB-PA): redigir uma carta propondo a realização de uma reunião entre com os respectivos chefes do Três Poderes, com a participação dos governadores. E então se enviou a carta abaixo a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado:
A Sua Excelência o Senhor
Senador Rodrigo Pacheco
Presidente do Senado Federal
Brasília - DF
Assunto: Solicitação de audiência. Diálogo entre os Poderes da República.
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal, Cumprimentando-o cordialmente, dirijo-me a Vossa Excelência, em nome dos Governadores dos Entes Federados brasileiros integrantes do Fórum Nacional de Governadores, a fim de solicitar o agendamento de audiência a ser realizada entre Vossa Excelência, este Colegiado, o Presidente da República e os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, com o propósito de identificar e pautar pontos convergentes e estratégias visando salvaguardar a paz social, a democracia e o bem-estar socioeconômico da população brasileira.
Certo de contar com a prestimosa atenção de Vossa Excelência, renovo os protestos de elevado apreço e distinta consideração.
Atenciosamente,
IBANEIS ROCHA
Governador do Distrito Federal
Coordenador do Fórum Nacional de Governadores
NADA CONTRA, MAS PARA QUÊ?
JÁ expressei aqui o que pensava da reunião nos termos anteriores, sem a presença de governadores. Não fazia sentido. Mesmo com eles, pergunta-se: mas qual o objetivo? Bolsonaro não porá fim a seus ataques ao Supremo e à ordem democrática. Ainda ontem, em mais uma entrevista a uma rádio, voltou a fazer os mesmos e infundados ataques às urnas eletrônicas e ao Supremo.
O pior de tudo é que há, efetivamente, uma chance razoável de que tome a sério seus delírios sangrentos, acreditando que, se levar para as ruas a sua minoria — que, ainda assim, é muita gente —, consegue arrancar no berro o que quer. Sempre que alguém diz que os militares têm vontade de desembarcar da aventura bolsonarista, mas não o fazem porque, afinal, não querem Lula, eu cá me pergunto: nos 13 anos de poder petista, senhores militares, alguém ambicionou, no Palácio, alguma vez, comandar uma luta armada? Hoje, o chefe do Poder Executivo trata, sem receio, as armas como instrumento político.
Assim, num primeiro momento, mesmo com a presença de governadores, a reunião parece inútil, já que Bolsonaro evidencia que não tem nada a negociar. Ou cedem às suas vontades, ou ele pretende ir para a porrada. Já expliquei aqui o truque. Não! Os militares não vão se mobilizar para dar um golpe, como ele gostaria. Mas subsiste na mente de alguns celerados a desordem generalizada, de sorte a criar as circunstâncias para acionar as Forças Armadas.
Acontecendo a reunião com ou sem Bolsonaro, é importante, então, que os governadores, sabedores de que o presidente não vai recuar, evidenciem os riscos a que estão expostos os brasileiros. Sem ter resposta para a grave situação econômica que vive o país, com os fundamentos da economia em franca deterioração, restou ao presidente da República apostar no vale-tudo. Reveste, no entanto, sua retórica golpista com apelos ao que chama "liberdade", tese encampada por alguns bate-paus disfarçados de jornalistas — igualmente criminosos.
AINDA QUE SEJA LOUCURA, SEMPRE FOI ISSO
É mentira documentada que Bolsonaro caminhou para esses extremos porque, afinal, os outros Poderes criaram empecilhos a seu governo. Não me canso de lembrar que o Inquérito 4.781, o das fake news -- um daqueles nos quais o presidente é investigado -- foi aberto no dia 14 de março de 2019, de ofício, por Dias Toffoli, numa atitude legal e correta. O presidente não tinha completado nem seu terceiro mês de mandato. E o Supremo já estava na mira das suas milícias.
Não só! Também o Congresso apanhava. Agora não. Bolsonaro terceirizou o governo para o centrão, que ficará agarrado ao osso até a undécima hora. O "Mito" já não governa mais. Sua tarefa diária, agora, é insuflar seus extremistas, que desafiam com desassombro as instituições.
Ontem, Antônio Galvan, presidente da Aprosoja Brasil (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), foi depor da sede da PF em Sinop, no Mato Grosso, em cima de um trator. Ele é um dos investigados no inquérito que apura os atos de agressão à democracia. Liderou uma espécie de "tratorata" até a PF. Dava para sentir de longe a certeza da impunidade.
E aí, senhores militares dentro e fora do governo? Estão satisfeitos com o que veem? Era esse o Brasil da reconstrução com o qual sonhavam?
COISA ANTIGA
Que fique claro: nada disso é recente. Bolsonaro vem engrossando esse caldo há muito tempo. Abaixo, segue um vídeo com trechos do programa "O É da Coisa" de 21 de fevereiro de 2020 -- dois dias depois do tiro disparado contra Cid Gomes. Bolsonaro estava no poder havia pouco mais de um ano, e a agitação já corria solta nos quartéis das PMs. O Ceará foi só a expressão mais virulenta dessa anomalia.
Nesta segunda, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) passou o dia nas redes sociais a insuflar os policiais de São Paulo contra o governador João Doria. Um dos pontos de militância era a obrigatoriedade do uso de câmeras nos uniformes, o que levou à menor letalidade da polícia em oito anos.
É claro que Eduardo é contra — como são contra aqueles que acreditam que o uso de uniforme lhe dá autoridade para a violência gratuita. Temos um deputado federal que não hesitaria em recorrer à imunidade parlamentar para justificar o claro incentivo à indisciplina. E estamos falando de uma força que, segundo a Constituição, é reserva do Exército, estando submetida às mesmas restrições no que respeita à politização. Mas esse é o rapaz que afirmou, ainda durante a campanha de 2018, que, se o Supremo se insurgisse contra as vontades de seu pai, bastaria fechá-lo com um cabo e um soldado, não precisando nem de um jipe.
E ARTHUR LIRA?
E Arthur Lira, presidente da Câmara, aquele que afirmou que estava com o botão amarelo apertado? A notícia mais recente que se tem sobre o Centrão é que Bolsonaro pensa em entregar ao grupo mais quatro ministérios. O presidente, diga-se, desistiu de impor qualquer veto e manteve na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) as emendas de comissão permanente e de relator-geral, que é o tal "Orçamento Secreto".
Cabe perguntar ao presidente da Câmara: o senhor já estabeleceu uma cota extra de cadáveres, a ser fornecida pelo golpista — estes na base da bala — que justifique todo esse poder?
Os 600 mil da Covid-19, já sabemos, não são suficientes para distanciá-lo de Bolsonaro. Existe a cota secreta de corpos? De quanto será?
Segue o trecho do programa de 21 de fevereiro de 2020. Está tudo ali.