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Punição ambiental ameaça país, mas Bolsonaro delira como "emir de Roraima"
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Tenho afirmado aqui e em toda parte que Jair Bolsonaro, sob o pretexto de combater um tal "globalismo comunista", é o presidente mais anticapitalista da história. Durante a viagem aos Emirados, enquanto ele se dedicava a patrulhar as questões do Enem — para inflamar suas milícias hidrófobas nas redes sociais — e a fazer piadinhas homofóbicas para delírio daquelas notáveis inteligências que o cercam, Mario Frias entre elas —, algo de muito sério e muito grave passou a ameaçar o país.
A Comissão Europeia propôs uma lei para barrar a importação de commodities e produtos que tenham origem em áreas de desmatamento. Na lista estão carne bovina, soja, óleo de palma, madeira, cacau e café, além de couro, chocolate e móveis. Tudo isso está na pauta brasileira de exportações, com destaque, como é sabido, para carne e soja.
Para que se transforme em lei, o texto tem de ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelos países membros da União Europeia. Não deve haver dificuldade para isso. Sim, as empresas exportadoras terão de demonstrar que os produtos obedecem à legislação de seus respetivos países, mas só isso não vai bastar.
A Comissão Europeia considera o risco de que governos procurem abrandar ou relaxar suas leis ambientais, legalizando o ambientalmente inaceitável para não perder mercado. Assim, a proposta prevê ainda o veto à importação de produtos de áreas desmatadas depois de 31 de dezembro de 2020, pouco importando se esse desmatamento é legal ou ilegal.
Para Virginijus Sinkevicius, comissário de meio ambiente da UE, "as regulamentações de desmatamento que estamos colocando sobre a mesa são as tentativas legislativas mais ambiciosas de lidar com essas questões em todo o mundo". As autoridades europeias do meio ambiente consideram que o fato de não se impor um marco temporal para o desmatamento acaba contribuindo para a destruição de áreas florestais, de sorte que "legalizar" acaba virando sinônimo de desmatar.
Sim, mesmo o excelente Código Florestal que temos pode acabar se chocando com a rigidez pretendida pela comissão. A depender do bioma em que estejam, as propriedades têm de manter um percentual de ARL (Área de Reserva Legal). Na Amazônia, por exemplo, a ARL tem de ser de 80%; no Cerrado, de 35%; nos chamados Campos Gerais, de 20%. As "Áreas de Preservação Permanentes" devem ser levadas em conta para formar as ARLs.
Notem: há propriedades em que ainda pode haver o desmatamento legal, desde que se conservem os percentuais obrigatórios. Se virar lei o que a Comissão Europeia propõe, isso não fará diferença. Se o desflorestamento for posterior àquela data, pouco importa se a propriedade, em si, está de acordo com os limites da legislação.
Cumpre lembrar: na COP 26, Estados Unidos e China assinaram um documento conjunto se comprometendo a criar leis para impedir a compra de produtos que tenham origem em áreas desmatadas. A COP 26 é aquele encontro a que Bolsonaro não compareceu porque estava muito ocupado zanzando pela Itália e desfilando ao lado do neofascista Matteo Salvini.
O texto assinado por EUA e China é explícito:
"Reconhecendo que a eliminação do desmatamento ilegal global contribuiria significativamente para o esforço de atingir as metas de Paris, os dois países acolhem com satisfação a Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra. Os dois lados pretendem se engajar de forma colaborativa no apoio à eliminação do desmatamento ilegal global por meio da aplicação efetiva de suas respectivas leis de proibição de importações ilegais".
RECORDE
A Comissão Europeia faz o seu anúncio no dia em que o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) informa que o desmatamento na área, entre janeiro e outubro deste ano, é o maior em dez anos: 9.742 km². Isso corresponde a mais de seis vezes a cidade de São Paulo. Os dados foram colhidos pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), que monitora a floresta por meio de imagens geradas por satélites.
China, EUA, União Europeia... Os maiores compradores de commodities brasileiras estão reforçando o seu compromisso com o combate ao desmatamento de uma maneira que vai além da retórica, se cumprida a promessa: haveria uma legislação impedindo a compra de produtos que não puderem contar com a devida certificação. No caso da UE, até mesmo a produção considerada legal pode arcar com o custo da irresponsabilidade: vai valer o marco temporal.
Os grandes do agronegócio no Brasil estão empenhados em desenvolver seus sistemas de rastreabilidade da produção, a despeito das boçalidades e omissões do governo brasileiro. Ainda que se consiga a devida certificação para as nossas exportações, sempre haverá o risco de retaliações enquanto recordes de desmatamento forem sendo superados a cada ano. É preciso reverter esses índices, e a verdade é que ninguém espera que isso possa acontecer no governo Bolsonaro.
O REI DE RORAIMA
Enquanto uma questão dessa gravidade ameaça a economia brasileira, aquele que deveria presidir o Brasil se dedicava em Doha, no Catar, a tecer considerações sobre as questões do Enem, falando com a sapiência que lhe é tão característica. Depois de negar que tenha tido acesso às questões do exame, afirmou:
"Olha o padrão do Enem do Brasil. Pelo amor de Deus! Aquilo mede algum conhecimento, ou é ativismo político? Ou é ativismo também na questão comportamental. Não precisa disso".
Com aquela ligeireza que a estupidez costuma conferir aos ousados, o presidente decidiu delirar, ainda fascinado com as ditaduras que visitou:
"Você pode ver. No Brasil, nós temos uma tabela periódica [referência à tabela de elementos químicos] só no estado de Roraima. Em campanha eu falei: 'Se eu fosse o rei de Roraima - olha só que coisa linda, hein? Temos rei aqui nesta região... Se eu fosse rei de Roraima, em dez anos, teria um PIB igual ao de São Paulo. Ouso dizer: se eu fosse o rei de Roraima, em dez anos, teria o maior PIB do mundo".
Isso explica a lama em que estamos. O eleitorado deu a Bolsonaro a licença para governar um dos maiores países do mundo em extensão territorial, população e PIB. Seu governo contribuiu para afundar o gigante no baixo crescimento, na inflação, no desemprego e na fome.
E ele sonha com uma Roraima mais pujante do que São Paulo. Desde, é claro, que pudesse ser rei absolutista. Só, então, ele conseguiria pôr todo seu talento a nosso serviço. A sua atuação durante a pandemia evidencia como poderia ser o seu reinado...
FUNDO DO POÇO
Bolsonaro nos proporcionou um outro momento notável. Mário Frias, Secretário da Cultura, postou nas suas redes sociais um vídeo em que assina um acordo de cooperação na área com autoridades do Bahrein. Sabe-se lá o quê... Enquanto se dá o evento oficial, o próprio presidente, Michelle, a sua mulher, e o senador Flávio Bolsonaro se comportavam na plateia como a turma do fundão.
Flávio diz: "Quem diria, hein? Da Malhação..."
Michelle emenda: "É... E ainda tinha a revista 'Capricho'...
E Bolsonaro diz ao ouvido de uma autoridade do Bahrein, mediado por um intérprete: "Mas é hétero".
O homem esboça um sorriso. Fazer o quê? O presidente brasileiro cai na gargalhada, rindo do que considerou uma piada. Dirige-se a Fria e afirma, fazendo sinal de positivo:
"Te elogiei aqui, fica tranquilo. Te elogiei..."
Eis o nosso candidato a rei. Essa era a agenda de Bolsonaro enquanto a Comissão Europeia propunha a mais drástica das medidas na área do meio ambiente e que pode criar sérias dificuldades para o país.
Nota: todas as autoridades e funcionários do governo do Bahrein usam máscara. A única exceção é quem assina o acordo. Nenhum brasileiro usa a proteção. Bolsonaro fala aos ouvidos de um deles aspergindo seus vapores salivares, alheio às regras sanitárias.
O conjunto é assombroso?
É.
Mas assim são as coisas.