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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Desconstruindo chororô de Moro. Por que MPF se omite tão escandalosamente?

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/02/2022 16h00

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O ex-juiz, ex-ministro, ex-consultor e atual pré-candidato do Podemos à Presidência da República exibe uma característica ruim para político: é queixo de vidro. Quando ele está desferindo as porradas, parece invencível: uma verdadeira máquina de produzir vítimas e de provocar "knockdowns". Se conseguem encaixar um soquinho de nada no seu queixo, as pernas ameaçam dobrar, ele dá uma bambeada e fica meio zonzo. Não é uma característica muito boa para quem pretende ser líder político.

O TCU, como sabem, abriu um procedimento para apurar a contratação de Moro pela Alvarez & Marsal pela fabulosa quantia — a declarada — de quase R$ 4 milhões por também declarados 11 meses de trabalho — que ninguém sabe em que consistiu. Em tese, o doutor daria "consultoria" a empresas americanas. É um dinheiro invulgar. É de se supor que haja por lá nativos com mais destreza na própria legislação do que aquele ex-juiz vindo de longe.

Lembro pela enésima vez que, tendo sido Moro quem foi e sendo a Alvarez & Marsal o que é, estamos diante de uma questão pública da maior relevância. É claro que ele deve explicações. Foi trabalhar num grupo que admite que 78% do faturamento do seu braço voltado para a área de recuperação judicial são oriundos de contratos com empresas que a Lava Jato (que Moro admitiu ter comandado) mandou à lona com suas porradas. Ele era bom nisso. Na ofensiva e tendo a imprensa como porta-voz, ele espancava a lei sem dó.

Agora que perguntam detalhes sobre a sua contratação, o pré-candidato está fazendo um esforço imenso para ver se consegue a solidariedade dos jornalistas. Deve ter saudade do tempo em que ele era o aiatolá de certo jornalismo que chamava, sem nenhuma vergonha, a si mesmo de "investigativo". Alimentava-se preguiçosamente de vazamentos proporcionados por procuradores e delegados, também espancava o devido processo legal com determinação, promovia condenações sem provas... Era o espetáculo do emburrecimento, que deu à luz Jair Bolsonaro.

Moro percebe que as coisas ficaram um pouco mais difíceis para ele depois da Vaza Jato. Ainda há na imprensa brasileira, é verdade, sedizentes colunistas que acham normal e razoável que um juiz combine os passos com o órgão acusador para selecionar seus alvos. De todo modo, ele não é mais o "magister dixit" do processo penal, decidindo quem deve viver e quem deve morrer na política. Aquele juiz agora é oficialmente o que sempre foi no escurinho da toga: político.

A defesa de Moro contesta, obviamente, no TCU o pedido de bloqueio de bens feito por Lucas Rocha Furtado, subprocurador-geral do MP junto ao tribunal. O ex-ministro está indignado porque, pela primeira vez, ele se vê na contingência de dar explicações, não de cobrar. Antes, tinha quase toda a imprensa a lhe servir de porta-voz. Ainda conta com seus guerreiros, mas é evidente que a candidatura padece de um déficit de credibilidade.

"LAWFARE" E ABUSO DE AUTORIDADE?
Moro agora diz, por intermédio de seu advogado, que está sendo vítima de "lawfare", expressão que, no Brasil, tornou-se frequente no noticiário pela defesa de Lula. Designa uma prática que consiste em manipular a Justiça e os órgãos de investigação para perseguir adversários políticos. Mais: senadores do seu partido recorreram à PGR acusando Rocha Furtado de "abuso de autoridade". Que fabuloso! Essa lei que pune abuso de autoridade passou contra a vontade e contra a militância ativa de Moro e da Lava Jato. Diziam aos quatro ventos que era um instrumento para pôr fim à operação. Bem, a hipocrisia é o menor dos pecados nessa lambança.

Já escrevi aqui e já disse em programas de rádio que, embora nada haja de ilegal na apuração do TCU, o "locus" mais adequado da apuração, sem dúvida, é mesmo o Ministério Público Federal. Até porque entendo que estamos lidando com matéria penal, coisa a que o TCU não pode se ater porque não é Justiça. A nota em que a A&M anunciou a contratação de Moro em 2020 é o ponto de partida. Extraio trechos:

"Moro é especialista em liderar investigações anticorrupção complexas e de alto perfil, crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro e crime organizado, bem como aconselhar clientes sobre estratégia e conformidade regulatória proativa. Sua contratação reforça o time da A&M formado por ex-funcionários de governos"

Ninguém sabia, e Moro não contestou, que, como juiz e ministro da Justiça, era "ESPECIALISTA EM ACONSELHAR CLIENTES".

Juiz ter "clientes" é mais do que uma extravagância. É um crime.

Em seguida, a A&M cita o seu time:
"Steve Spiegelhalter (ex-promotor do Departamento de Justiça dos EUA), Bill Waldie (agente especial aposentado do FBI), Anita Alvarez (ex-procuradora do estado de Cook County, Chicago) e Robert DeCicco (ex-funcionário civil da Agência de Segurança Nacional), Paul Sharma (ex-vice-chefe da Autoridade de Regulação Prudencial do Reino Unido) e Suzanne Maughan (ex-líder investigativo da Divisão de Execução e Crime Financeiro da Autoridade de Conduta Financeira e investigador destacado para o Escritório de Fraudes)"

Como se nota, são ex-autoridades que resolvem passar para a outro lado do balcão, levando o que aprenderam e o que sabem — inclusive de informações sigilosas, de Estado — para colocar a serviço da clientela.

Há mais: a nota da Alvarez & Marsal afirma que, no Brasil, Moro ia além das atribuições de um juiz -- e também isto ele não contestou:
"(...) tanto como ministro quanto como juiz federal, Moro colaborou com autoridades de países da América Latina, América do Norte e Europa na investigação de casos criminais internacionais relacionados a suborno, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e crime organizado".

Como ministro, vá lá... Mas ele tinha essa atuação também como juiz, passando por cima, então, do Ministério da Justiça e do Itamaraty, que dispõem de suas respectivas instâncias para cuidar de tais assuntos, que dizem respeito à relação entre governos?

Considerando seus demais "sócios", parece haver aí a criação de uma espécie de ente supranacional não de combate à corrupção, mas de "aconselhamento a clientes". Como autoridades não são mais, então põem a serviço de quem paga a conta as informações que colheram quando eram servidores poderosos, dispondo dos instrumentos de coação do Estado.

Ainda que que o braço de recuperação judicial da A&M não tivesse em empresas que a Lava Jato quebrou a fonte de 78% do seu faturamento, estaríamos, quando menos, diante de algo a ser investigado. Tivemos à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba uma espécie de agente de interesses supranacionais? Oh, sim! Países podem e devem celebrar acordos de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, mas que estejam a serviço do Estado, não de clientes privados que, por óbvio, põem seus próprios interesses acima do dos países.

E por que o Ministério Público Federal não investiga? Porque não quer.

ENTÃO SÃO IGUAIS?
Nas redes, Moro está sendo criticado por supostamente recorrer a instrumentos a que Lula recorreu para se defender, notadamente a acusação de "lawfare": manipulação de instrumentos de justiça para perseguir um inimigo político -- sempre notando que o TCU não integra o Judiciário. Também há a ironia de recorrer à lei que pune abuso de autoridade, que ele tanto combateu, para tentar punir quem pede que seja investigado.

Sim, isso tem lá a sua ironia. Mas não há semelhança nenhuma entre Lula e Moro. A razão é muito simples. O petista não era juiz nem gozava das prerrogativas de um magistrado — maiores e mais protetivas do que as de um presidente da República. A Justiça é o remédio dos males. Não pode ela mesma degenerar em veneno em razão da manipulação do processo judicial ou do abuso das tais prerrogativas que existem para garantir independência ao juiz, não para que seja um déspota de toga à espera de passar para o outro lado do balcão.

Moro ter aceitado o cargo de ministro da Justiça daquele que só foi eleito porque não pôde concorrer com um líder político que ele mandou prender — condenando sem provas — já deveria ser escândalo o suficiente. Que tenha ido trabalhar depois, nas condições acima listadas, num grupo que lucra milhões com empresas que a Lava Jato quebrou é um assombro. Que confesse, depois de ficar sem saída, o recebimento de quase R$ 4 milhões por meros 11 meses de trabalho — sem revelar, afinal, que diabos fazia — e decida se lançar à Presidência, elegendo como principal adversário aquele que condenou sem provas e que mandou para a cadeia... Bem, aí já se extrapolam todos os limites da esculhambação.

É claro que Moro já teria decretado a prisão preventiva de Moro se houvesse um MPF sob o comando de Moro...

Mas que fique claro: o que ele fez, até onde se sabe, é inédito. Nunca houve um juiz tão influente no Brasil, depois ministro da Justiça, contratado por um grupo privado porque "ESPECIALISTA EM LIDERAR INVESTIGAÇÕES ANTICORRUPÇÃO complexas e de alto perfil, crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro e crime organizado, bem como ACONSELHAR CLIENTES sobre estratégia e conformidade regulatória proativa."

Eu não sabia que juízes "lideravam investigações" no Brasil. A lei também não.

Eu não sabia que juízes "aconselhavam clientes" no Brasil. A lei também não.

Aliás, essas não são prerrogativas nem de um ministro da Justiça.

Para quem Moro trabalhava?

Queixo de vidro. Pés de barro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL