Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ciro afirma que Lula quer destruir as esquerdas. Pretende atrair a quem?
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O pré-candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes, tem conseguido agitar o noticiário político de uma maneira inusitada, dados os discursos dos demais postulantes a adversário de Lula num eventual segundo turno. Como há uma certa convicção temerária de que "Lula já ganhou", toda crítica ao PT, em certos setores da imprensa, parece oportuna para evidenciar independência. Não tarda, e haverá o convite: "Se um petista já pisou no seu pé ou olhou feio para a sua cara, mande a sua história para nós".
Uma lembrança: a eleição ainda não se deu, e a disputa mal começou. Tudo pode acontecer, inclusive a vitória de Bolsonaro — o que, hoje, parece improvável. Mas o pleito só ocorre em outubro, e tendência não é fato consumado.
Os que, à direita, pretendem romper isso a que chamam por aí de "polarização" entre Lula e Bolsonaro — vocês sabem que discordo do termo — têm insistido num recurso muito comum em campanha eleitoral: a tática do espantalho. Ou, no caso, dos dois espantalhos. A síntese: "O atual presidente não tem condições de continuar porque está conduzindo o país à ruína econômica, porque é incompetente, porque se aliou ao vírus". Bem, corrijo-me um tanto: é um retrato. E o retrato é um espantalho.
E Lula? Bem, o petista, como quer outro Ciro, o Nogueira (chefe da Casa Civil), estaria se fingindo de moderado, mas seria, na verdade, um radical perigoso, com potencial para "venezuelizar" o Brasil. E, por óbvio, evocam-se as acusações de corrupção, ainda que Lula tenha um trunfo inegável: suas condenações foram anuladas, e o juiz foi declarado suspeito. "Ah, mas não foi inocentado..." Bem, em processo anulado, esse tipo de questão nem se coloca.
A caracterização de Lula como um extremista tem sido contrastada com os fatos: o petista tem conversa avançada para ter como vice o ex-tucano Geraldo Alckmin. Será ele? Não sei. Não sendo, um outro com o mesmo teor de conservadorismo ou centrismo ocupará o lugar.
Mais: radicais não costumam tentar ampliar o máximo possível o arco de alianças. E Lula tem se dedicado a essa tarefa noite e dia. A composição eleitoral propriamente, com todas as suas dificuldades, tem como principal interlocutor hoje o PSB. E é evidente que ele busca outras legendas de esquerda. Mas transita com desenvoltura no centro e até na direita. Já está de olho na governabilidade caso eleito.
Há, no próprio PT, os descontentes. Setores do partido e das esquerdas são, entendo, imprudentes o bastante para achar que, no pós-Bolsonaro, cabe um governo de puristas pouco afeitos ao diálogo. Não são a maioria nem fazem a cabeça de Lula. Ele não é um radical. Nunca foi. Agora voltemos a Ciro Gomes.
O candidato do PDT apela, com frequência, a alusões nada sutis às acusações que a Lava Jato fez ao PT — embora ele próprio tenha sido alvo há pouco tempo de ação atrabiliária —, mas é fato que essa não é a peça de resistência de sua campanha contra Lula, lembrando sempre que tem como marqueteiro João Santana, que caiu nas malhas da operação.
Também não é raro que Ciro sugira que Lula é por demais subserviente a interesses de banqueiros, por exemplo, colocando-se como o arauto da verdadeira mudança. Assim, o jeito de ser da sua "terceira via" — essa expressão que detesto — é outro: não se confunde com o de Doria ou de Moro, que o pedetista fustiga, diga-se.
O caminho que Ciro está tentando abrir não é fácil. Afirmou sobre o ex-presidente:
"Não sou como o Lula. O Lula está destruindo o PSOL, o PCdoB, o PSB? Porque, pro Lula, tem de ficar o PT sozinho".
Ainda estou cá tentando entender a tática. Sim, Ciro comentava um acordo eleitoral com Eduardo Paes, prefeito do Rio. Ou Rodrigo Neves (PDT) ou Felipe Santa Cruz (PSD) será o candidato da coligação ao governo do Estado. A união se dá como reação ao já declarado apoio de Lula à pré-candidatura de Marcelo Freixo (PSB).
Em entrevista, Paes afirmou que o PT está de salto alto; que Lula não é assim tão influente numa eleição no Rio e acusou a inexperiência de Freixo. Só para lembrar: se Santa Cruz for o cabeça de chapa, estará disputando a primeira eleição.
Não vou me ater à disputa no Rio agora. O que me pergunto, e acho que só o tempo vai responder, é se a acusação que Ciro faz — Lula está destruindo as esquerdas — rende votos, apoios, palanques.
O PC do B não tem rigorosamente nada a perder na sua proximidade com Lula. Caso venha a federação, isso pode livrá-lo da extinção. O PSOL, que nasceu de uma costela do PT, certamente vai calibrar as suas exigências de olho na cláusula de barreira. Ninguém ali nasceu ontem. Não tem muito o que trocar com o PT e, numa leitura objetiva do jogo, os psolistas devem saber que, na disputa pelo governo de São Paulo, a ordem da fila, para o petismo, é Fernando Haddad (PT), Márcio França (PSB) e Guilherme Boulos (PSOL). Ninguém impedirá Boulos de ser candidato se esta for a sua vontade e a do seu partido.
A fala de Ciro, pois, mira mesmo é o PSB. Em Pernambuco, o PT acaba de abrir mão da candidatura de Humberto Costa, que lidera as pesquisas, em benefício de Danilo Cabral, um peessebista. No partido, a maioria das lideranças regionais quer não apenas a aliança na disputa presidencial como a formação da federação.
Parece-me um discurso sem muito futuro. Afinal, Ciro acusa Lula de querer destruir as esquerdas, mas ele mesmo tem de fazer um tipo de crítica ao petista que busca, é inegável, atrair votos e lideranças da direita. Mais: como ele se opõe diretamente a Lula e o acusa de "esquerdocida", então é inegável constatar que se apresenta como uma voz a substituí-lo nesse terreno ideológico. Ainda que a intenção não seja essa, eis um desdobramento lógico da fala. Qual a chance de isso acontecer?
Lembro de novo: a eleição ainda não aconteceu. E Bolsonaro ainda está vivo eleitoralmente.