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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A tortura dos arquivos do STM fala também ao futuro, não apenas ao passado

MaxPixel
Imagem: MaxPixel

Colunista do UOL

18/04/2022 07h26

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Áudios e transcrições de trechos de sessões do Superior Tribunal Militar, ocorridas entre 1975 e 1979, que vieram a público neste domingo, revelados pela jornalista Míriam Leitão, em O Globo, poderiam ser apenas a expressão de um período nefasto da história brasileira, já devidamente superado e agora submetido ao escrutínio de historiadores para o seu devido detalhamento, com a consequente reconstituição daqueles anos sombrios, em que o Estado e o governo brasileiros desceram aos porões para torturar e para matar em nome — e esta é a ironia trágica — da democracia.

Infelizmente, nos 34 anos da Constituição e às vésperas das eleições presidenciais, convivemos com a retórica ameaçadora e golpista de Jair Bolsonaro; com a inércia da Procuradoria Geral da República diante de flagrantes agressões do mandatário a princípios da Carta; com a conivência de parte considerável do Congresso, comprada com recursos do Orçamento secreto; com o silêncio cúmplice de parte considerável da elite econômica, que cobra do presidente não mais do que a subordinação a algumas "leis de mercado" — pouco importando os valores que vocaliza — e com a estupefaciente alienação de alguns pré-candidatos à Presidência, que dizem se opor a extremos quando — e afirmo isso há bem mais de um ano — há um único extremista na corrida eleitoral.

Os áudios divulgados por Míriam, ela própria vítima de tortura, são parte de um trabalho de pesquisa do professor Carlos Fico, da Universidade Federal da Rio de Janeiro (UFRJ), que analisa 10 mil horas de gravações, inclusive de sessões secretas, do STM. Eles não são "a" prova de que houve tortura durante a ditadura. São uma prova a mais. Afinal, o terror já tinha sido documentado à farta, com o testemunho de torturados e torturadores e outros documentos. Mas não deixa de ser chocante, nauseante mesmo, que próceres da ditadura — e é essa a condição daqueles senhores — admitam candidamente, alguns com mais clareza, outros de maneira hesitante, que vigorava no país um sistema que arrancava confissões seviciando os presos.

Transcrevo um trecho de um voto do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, em sessão de 19 de outubro de 1976:
O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado. Senhores ministros, já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes. Longe de contribuírem para a elucidação dos delitos invalidam processos, trazendo para os tribunais a incerteza sobre o crime e a certeza sobre a violência. A ação nefasta de uns tantos policiais estende a toda a classe, sem dúvida, na grande maioria, honesta, útil e laboriosa, um manto de suspeita no modo de proceder. Essa ação sinistra de poucos é que extravasa além das nossas fronteiras repercutindo no exterior, como se todos nós fôssemos uns infratores dos direitos humanos, sei o que pensa o nosso preclaro presidente da República sobre o assunto. Tenho contatos com os oficiais generais das três forças Armadas que em sua totalidade deploram tais fatos. Diariamente vejo o cuidado com que vossas excelências examinam os processos em julgamento. É quase sistemática a pergunta: essas declarações foram prestadas em juízo ou na polícia? Também já se tornou um hábito as defesas apelarem, generalizando, que as declarações prestadas na polícia foram feitas sob maus tratos, dando a entender que nos organismos policiais não se salva mais ninguém. Se o Executivo e o Legislativo não se conformam com essas ocorrências, é claro que o Judiciário não as admite e nós, autoridades da organização judiciária militar, temos o dever de propugnar pela extinção desses cancros, as sevícias.

Que fique claro: não há em sua fala qualquer simpatia por aqueles que chamavam, então, "subversivos". Antes de fazer tais afirmações, o almirante canta as glórias da chamada "Operação Bandeirantes", notável por sua truculência e por sua parceria com os porões da ditadura. Revela também preocupação com o fato de que há notícias no exterior sobre tortura no Brasil. De todo modo, o que vai acima evidencia: a tortura era de amplo conhecimento da cúpula do governo e dos tribunais.

Num determinado momento de suas considerações, Bierrembach fala sobre o "preclaro presidente", referindo-se a Geisel, sugerindo que ele se opunha à tortura de presos. Também é história que o general, com efeito, atuou para controlar os porões. Mas a cada um segundo a sua biografia.

A manifestação mais eloquente e assombrosa sobre os métodos delinquentes a que recorria a ditadura veio à luz em 2018 pelas mãos do professor Matias Spektor. Documento da CIA de 1974, tornado público pela agência americana em 2015, sustenta que Geisel — ele mesmo! —, no início do seu governo, levou para o Palácio do Planalto a responsabilidade sobre a execução de inimigos do regime. Transcrevo trecho de reportagem da Folha sobre o documento da CIA:

O papel é um memorando assinado pela mais alta autoridade da principal agência de inteligência dos EUA na época, o diretor da CIA, William Colby (1920-1996). Ele relata uma reunião que teria ocorrido em 30 de março de 1974, no início do governo Geisel, entre o presidente, Tavares, Figueiredo e o general que iria assumir a chefia no CIE, Confúcio Danton de Paula Avelino.

Segundo o memorando, [general Milton] Tavares [chefe do Centro de Informações do Exército] ressaltou o !trabalho do CIE contra alvos da subversão interna durante a administração do presidente Emílio Médici [1969-1974]".

"Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça terrorista e subversiva e disse que métodos extralegais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. Sobre isso, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nessa categoria foram sumariamente executadas pelo CIE até agora. Figueiredo apoiou essa política e instou a sua continuidade".

Na ocasião da reunião, segundo Colby, Geisel comentou a seriedade e os aspectos prejudiciais dessa política e disse que gostaria de refletir sobre o assunto durante o final de semana antes de chegar a qualquer decisão. Dias depois, em 1º de abril, segundo o diretor da CIA, Geisel comunicou sua decisão ao general Figueiredo.

"Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que grandes precauções deveriam ser tomadas para assegurar que apenas subversivos perigosos sejam executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE apreende uma pessoa que pode estar nessa categoria, o chefe do CIE vai consultar o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes de a pessoa ser executada", diz o memorando de Colby.

RETOMANDO
Inexistem ditaduras virtuosas. Se podem tudo, desrespeitam até as leis que elas mesmas instituem. Afinal, para todos os efeitos, nem o AI-5 permitia a tortura, embora dotasse o Estado e seus aparelhos repressivos de todos os instrumentos para a sua aplicação.

Voltemos ao ponto. Os arquivos do Superior Tribunal Militar poderiam ser só uma memória triste. Mas é preciso que sejam ouvidos, por exemplo, no contexto da Ordem do Dia alusiva do 31 de março de 1964 emitida pelo Ministério da Defesa, quando seu titular era Braga Netto, possível vice na chapa de Bolsonaro.

Lá se lê a seguinte delinquência:
"Nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no País, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional."

Ditadura, com tortura, para salvar a democracia, entendem? Os ditadores sempre gostam de alegar bons propósitos. As primeiras palavras do AI-5 são estas:
"CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo..."

ENCERRO
A democracia brasileira está sob ameaça. E é bom que isso fique claro. Este colunista manifesta seu profundo desprezo intelectual, e já faz tempo, a certa idiotia que insiste na tese da polarização das eleições. Existe: mas se dá entre os que se alinham com o regime democrático e os que ecoam as vozes do porão, que se ouvem até nos votos dos ministros do Superior Tribunal Militar.

Escolha cada um o seu sonho, dados os pré-candidatos que aí estão. A neutralidade entre a corda e o pescoço sempre será corda. No dia em que os pré-candidatos da "terceira via" deixarem isso claro com todas as letras, então podem começar a ser tratados com seriedade. Ou o que os impedirá, caso não estejam no turno final da eleição, de advogar ou a neutralidade ou o alinhamento com Bolsonaro?

Democracia ou pregação golpista?

Escolha cada um o seu sonho.