Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A regressão das Forças Armadas e por que elas deveriam ser gratas ao PT
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
As Forças Armadas do Brasil voltaram a assumir as feições de gendarmes de republiqueta. Jair Bolsonaro lhes proporcionou tal oportunidade, e muitos de seus próceres não se fazem de rogados e se comportam como... gendarmes de republiquetas.
Bolsonaro reavivou paranoias e discursos regressivos que, creio, todos nós julgávamos superados. Constituiriam, quando muito, memória de histórias mal contadas, distorcidas por um tanto de corporativismo e outro de ignorância pura e simples. Mas, como é evidente, não é assim. O reacionarismo desinformado nas Forças, nota-se, é um elemento presente, que ainda procria. Se vaza na boca de alguns de seus oficiais-generais da ativa e da reserva, então é sinal de que a lição está sendo passada adiante, está instruindo as tropas, plasmando a sua identidade.
Demorou muito tempo até que a sociedade civil e os políticos pudessem olhar com confiança para os seus militares sem enxergar nelas o "pai patrão", que pode, a depender do seu humor, determinar: "Todos para a cama!" Ou para as celas. Transição com Sarney, Constituinte, governo Fernando Henrique e a criação do Ministério da Defesa, a sequência de gestões petistas... Os governos de esquerda — de Lula e Dilma — foram os que mais investiram nas Três Forças, e desafio que se prove o contrário. Não é assim porque eu quero. Assim é porque assim são os números.
Já na campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro repetia à farta a mentira de que o PT sucateou as Forças Armadas como parte de um grande complô comunista para fragilizar o país. Os comandantes sabem tratar-se de uma farsa. Exército, Marinha e Aeronáutica têm em seus arquivos os dados. Lula deu passos decisivos para a compra dos caças, o que se efetivou no governo Dilma, em 2013, ao custo de US$ 4,5 bilhões.
Entre 2003 e 2011, como já lembrei aqui, o Orçamento da Defesa cresceu 147%, passando de R$ 24,85 bilhões para R$ 61,2 bilhões. Em 2014, para citar um ano difícil e já em crise, o Brasil estava em 11º no ranking dos países que mais gastam em defesa: US$ 31,7 bilhões — ou 1,4% do PIB. Bem perto da rica Coreia do Sul, que vive em situação de guerra declarada, mas não efetiva, com a Coreia do Norte: US$ 36,7 bilhões. Mais números: naquele ano, o Japão, ao alcance de mísseis intercontinentais norte-coreanos, gastava com a área 1% do PIB. Os dados são do Stockholm International Peace Research Institut (SIPRI). Não é invencionice de capitão indisciplinado, que é chutado do Exército.
Na página da Marinha, aqui está o link, vocês encontram a seguinte notícia, do dia 15 de dezembro de 2018, quando Lula estava encarcerado, condenado que fora sem provas por Sérgio Moro, que já havia aceitado o convite para ser ministro da Justiça de Bolsonaro:
"O Riachuelo, primeiro submarino construído pelo Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), foi lançado ao mar na sexta-feira (14). A cerimônia ocorreu no Complexo Naval de Itaguaí, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O evento contou com a presença do presidente da República, Michel Temer; do presidente eleito, Jair Bolsonaro; do ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna; e do comandante da Marinha, almirante Eduardo Bacellar, entre outras autoridades civis e militares."
O tal submarino é o primeiro dos quatro convencionais do PROSUB, que prevê a construção do primeiro submarino brasileiro com propulsão nuclear. Quem assinou o acordo com os franceses para tocar adiante o projeto foi Lula. Vocês podem encontrar mais detalhes em outra página da Marinha.
POR QUE ESSA LEMBRANÇA?
Pode restar a desavisados a impressão, repetida por delinquentes e cretinos, de que os governos à esquerda -- notem que não empreguei a expressão "de esquerda" -- negligenciaram por desídia ou por preconceito a defesa do país. Deu-se justamente o contrário. E, em nenhum momento, houve o temor de que a capacitação das Forças Armadas e a modernização de equipamentos e tecnologia pudessem representar uma ameaça à ordem democrática. Antes de Bolsonaro, não se pronunciou a palavra "golpe" depois da redemocratização, e qualquer um que flertasse com essa possibilidade seria considerado um lunático. Até que o lunático se dissesse mais uma vez candidato e vencesse a eleição.
Os arquivos das sessões do Superior Tribunal Militar que vieram a público deveriam, já escrevi aqui, referir-se a um passado que todos nós — também as Forças Armadas — teríamos de esconjurar. E isso não implicaria de modo nenhum esquecer. Ao contrário: que tudo venha a público e que possamos ler e ouvir cada palavra. Diante de mais uma evidência inequívoca de que houve tortura no Brasil, os militares estariam obrigados a sentir pesar moral e vergonha institucional. Só lhes caberia lamentar que a instituição a que pertencem tenha sido vilipendiada, manipulada por criminosos com e sem farda.
PALAVRAS ASQUEROSAS
Em vez do lamento, tivemos de ouvir as palavras asquerosas do general da ativa Luiz Carlos Gomes Matos, presidente do Superior Tribunal Militar, que ficou visivelmente furioso não com o conteúdo tétrico dos arquivos, mas com a sua divulgação, preferindo, por incrível que pareça e mais uma vez, colocar-se do lado oposto ao das vítimas. Entre a corda e o pescoço, é descarada a sua simpatia pela corda.
Segundo o general, as informações são "contra o tribunal". Não! Temos juízes do STM apontando justamente a ação de torturadores. Não estivesse cegado pela ideologia, teria tido tempo de perceber que há vozes dizendo coisas também honradas, ainda que fossem todos alinhados com a ditadura.
No momento mais tenebroso do seu pronunciamento, chegou a afirmar sobre os áudios: "Aconteceu aí durante a Páscoa. Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém. Porque a minha não estragou. Garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós".
Reparem: há, na sua fala, um "nós" e um "eles". Ora, "eles" são os torturados. Quem é esse "nós", general? Os torturadores?
Que coisa! A Páscoa cristã marca justamente a ressurreição de Jesus, aquele que é uma espécie de emblema da injustiça, da tortura e da morte cruel. É claro que o general se referia à data apenas como o repasto do domingo.
Num dado momento, chegou a dizer que se trata de uma notícia tendenciosa, que diz privilegiar um dos lados em detrimento de outro. Não estando o general do lado dos torturados, cumpre indagar: está do lado dos torturadores?
FATORES DO ATRASO
As Forças Armadas passaram por um processo de modernização técnica -- garantida, em boa parte, por governos petistas --, mas se nota que a formação intelectual ainda é escrava de uma mistura de nacionalismo desinformado com deformações ideológicas herdeiras da Guerra Fria. O que é que se ensina nos quarteis? Qual é a bibliografia?
Imaginávamos que as relações institucionais de sucessivos governos, que respeitaram as Forças Armadas, muito especialmente os de esquerda, tivessem sepultado tentações golpistas. Mas não. Elas restaram encasuladas, à espera do melhor momento para nos assombrar de novo.
A devastação que a Lava Jato promoveu na política e na vida institucional contribuiu para alimentar certos apetites e devaneios: "Esses civis não sabem mesmo fazer. Nós, militares, governamos com mais zelo". Bem, a mentira se deixa comprovar de vários modos, em várias frentes, a começar pelos mais de 662 mil mortos de Covid-19.
Há um outro fator, que, creio, precisa ser examinado. Parece haver uma grave deformação intelectual em parte considerável do que chamarei "Geração Haiti" — que integrou, coordenou ou, de algum modo, participou das "Tropas de Paz" naquele país. Eram, na verdade, forças de guerra. Parece que se tomou ali gosto pela prática de governar pelas armas.
E restou, como é sabido, o descontentamento com a "Comissão Nacional da Verdade". Muitos entenderam a verdade como uma difamação, escapando-lhes que isso só é possível porque se conta a história de uma infâmia.
Faltava uma voz das catacumbas para dar expressão política aos gendarmes de Banânia. E ela apareceu.
Fala-se aqui de um desastre ético, moral e intelectual.
É preciso redemocratizar as Forças Armadas para que se entenda que o apreço pela hierarquia tem, no topo, a Constituição.