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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Michelle espalha intolerância após esconjurar demônios na igreja de Pádua

Michelle cochicha ao ouvido do marido durante culto na igreja de que Guilherme de Pádua, assassino de Daniella Perez, é pastor - Douglas Magno/AFP; Reprodução
Michelle cochicha ao ouvido do marido durante culto na igreja de que Guilherme de Pádua, assassino de Daniella Perez, é pastor Imagem: Douglas Magno/AFP; Reprodução

Colunista do UOL

10/08/2022 04h26

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Michelle Bolsonaro, a primeira-dama, anda caçando o diabo ou à caça do tinhoso, não se sabe bem. E foi encontrar seu "deus", de onde conclamou a luta contra maligno, na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Afirmou, no culto, com inspiração muito particular, que, antes de Bolsonaro, o Palácio do Planalto era consagrado aos demônios. É uma gente que não consegue conviver com adversários, associando-os ao mal, mas que pode abrigar assassinos desde que convertidos à sua fé. A Igreja da Lagoinha é aquela que abriga o ex-ator Guilherme de Pádua, que matou a atriz Daniella Perez. Ele se tornou pastor em 2017 e já participou de uma manifestação golpista em favor do presidente em 2020.

Para esses valentes, os seus são sempre bons, não importa o que façam ou tenham feito. Os outros, independentemente da obra, são sempre maus. Veem a religião como uma milícia, não como o exercício do amor de Deus. Será que exagero? Então vamos ver.

Um perfil de apoio à Michelle compartilhou nas redes sociais um vídeo que associa religiões de matrizes afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, às "trevas". A postagem inicial foi feita pela vereadora Sonaira Fernandes (Republicanos-SP). As imagens mostram o ex-presidente Lula durante um ritual, realizado no ano passado, em Salvador. No texto, a vereadora afirma que Lula "entregou sua alma para vencer essa eleição".

Escreveu ainda: "Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã." O perfil compartilhou esse post e escreveu: "Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!". Recebeu likes e respostas de bolsonaristas fiéis.

Discurso de ódio, preconceito, ignorância, truculência e racismo. Sonaira deve ignorar que o cristianismo já foi uma religião minoritária. Mais do que isso: foi clandestina — como, diga-se, as religiões negras tiveram de ser no Brasil. Saberá ela por que o peixe era uma espécie de senha empregada pelos primeiros cristãos? Ela e Michelle estão ocupadas demais discriminando o outro para ter tempo de aprender alguma coisa.

ÓDIO E PRECONCEITO MATAM
Essas mensagens todas deveriam ser banidas das redes sociais, e seus autores, punidos com suspensão ou exclusão. Não exercitam a liberdade de expressão. Reivindicam a primazia da opressão. Ao associar os adversários ao demônio, pretendem eliminar aqueles que não pertencem à sua turma. O deputado Pastor Feliciano teve a audácia de comentar: "Crente que vota nesse homem [Lula] é apóstata da fé; é fazer pacto com o maligno". É claro que está associando uma religião de origem africana ao diabo

E quem o faz? É o pardo — segundo designação do IBGE — Feliciano! Há sangue negro nas suas veias. E não! Ele não está obrigado a cultivar uma religião de origem africana em razão da cor de sua pele. Mas a Constituição impõe que respeite a fé alheia e a diversidade religiosa.

Lembro a Feliciano: entre as mortes violentas intencionais — homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial —, 78% foram de negros e 21,7% de brancos. No Brasil, 56% da população é negra, segundo o IBGE. No caso das mortes pela polícia, a diferença é ainda maior: 84% dos alvos são negros. Em 2021, este índice apresentou queda de 31% entre a população branca, mas cresceu 5,8% entre os negros, em comparação ao ano anterior.

DE VOLTA A MICHELLE
Michelle estava agastada porque foi muito criticada quando resolveu falar, lá na igreja em que Guilherme de Pádua ministra seus ensinamentos cristãos, sobre os demônios que teriam habitado o Palácio do Planalto antes de Bolsonaro. E resolveu, então, produzir um pouco mais de trevas. Lula participou, de fato, de um ritual do candomblé na Bahia. Mas, como o vídeo deixa evidente, não se discriminava nem se atacava ninguém; não se fazia política rasteira.

A cerimônia está relacionada à chamada "Irmandade da Boa Morte". E uma das mulheres presentes evoca Exu. Em razão de uma mentira miserável, o orixá é, muitas vezes, associado ao diabo do cristianismo. Exu é só o mensageiro, que faz a comunicação entre os homens e o mundo espiritual. Mas foi tomado como ente maligno pela violência do colonizador, pela estupidez e pelo preconceito. Lastimo, adicionalmente, que essa gente confunda seus ódios com a fé cristã. Inexiste cristianismo onde há intolerância.

A mulher que fala com Lula identifica a Irmandade da Boa Morte. Irmandades eram grupos religiosos formados por escravos, muitas vezes segundo seus respectivos ofícios. Adotavam o cristianismo, mas o fundiam com a religiosidade oriunda de suas comunidades originárias, ou das de seus ancestrais. Essa irmandade, a primeira de mulheres negras, faz referência à Nossa Senhora da Boa Morte.

A fé sem informação, sem reflexão, sem temperança e sem tolerância se converte em fanatismo e extremismo. E estes são sempre instrumentos facilmente manipuláveis por oportunistas.

Para terminar com um pouco de luz, transcrevo a letra da música "Milagres do Povo", de Caetano Veloso. Trata da violência da escravidão e de como os negros, trazidos à força, fizeram desta a sua terra, indo além da dor. E a religião é um dos elementos a plasmar uma identidade para aqueles que, então, já eram do Brasil, sem que o Brasil lhes pertença ainda hoje em dignidade e direitos.

"O grande vencedor se ergue além da dor".
*
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória
E paira para além da história

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar, Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá

É no xaréu que brilha a prata luz do céu
E o povo negro entendeu que o grande vencedor
se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar, Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá