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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lula acerta com Múcio na Defesa; país tem de devolver militares a quartéis

José Múcio Monteiro, futuro ministro da Defesa: Lula escolhe o caminho do diálogo e da prudência; restrições militares a seu nome não têm razão de ser - Reprodução
José Múcio Monteiro, futuro ministro da Defesa: Lula escolhe o caminho do diálogo e da prudência; restrições militares a seu nome não têm razão de ser Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

02/12/2022 21h33

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José Múcio Monteiro, ex-ministro do TCU, aceitou o convite de Lula para comandar o Ministério da Defesa. É uma escolha realista e prudente. Múcio é amigo do petista e tem trânsito fácil na caserna. A área é delicada. Se feita uma hierarquia dos itens que compõem a herança maldita de Jair Bolsonaro, a politização dos quartéis é, sem dúvida, a pior no que respeita à organização do Estado.

Fosse outro o ordenamento do mundo — e golpes não tivessem o condão de marginalizar países, isolando-os do concerto que conta das nações —, e o Brasil estaria diante de uma nova quartelada 58 anos depois da dita "Redentora". De saída, isso nos diz uma coisa: as Forças Armadas padecem, e sempre há as exceções, de escancarado atraso ideológico.

Não se tem nem indício de que os fardados tenham se mobilizado para impedir a realização das eleições ou a posse do eleito. Mas isso não quer dizer que tenham se empenhado o suficiente para manter a disciplina. A fermentação precede a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Entende-se que o marco zero do ressurgimento do "fator militar" como um problema político coincide com a instalação da Comissão da Verdade, ainda em 2012. Quando o general Eduardo Villas Bôas publicou os tais tuítes, em abril de 2018, no que pretendeu ser um ultimato ao Supremo, os soldados já haviam avançado muito além das suas sandálias — ou de seus coturnos.

Àquela altura, outra falange que servia à extrema-direita já havia realizado com sucesso o seu trabalho sujo: a Lava Jato. Parte considerável da sociedade brasileira via a política como o lugar privilegiado da bandalheira e do roubo. Conservadores e centristas não se beneficiaram do aluvião que colheu o PT, até porque a força-tarefa tinha, sim, o partido como o seu alvo principal, mas não exclusivamente. As lideranças de todos as grandes legendas, incluindo Michel Temer, que assumiu a Presidência com o impeachment de Dilma, entraram na mira e tiveram suas respectivas reputações destroçadas por mistificações e ilegalidades, ainda que se tenham cometido crimes, sim. A questão é como combatê-los sem destruir o país.

O BENEFICIÁRIO
Jair Bolsonaro não tinha mais adversários. Tornou-se o principal beneficiário da antipolítica. Se os uniformizados se mostraram, de início, um tanto reticentes -- até em razão do histórico de "mau militar" (by Ernesto Geisel) --, não tardou para que o vissem como o candidato das tropas. Parece ter contado menos, nessa adesão, a origem do que a prosa frouxa em nome da redenção moral do Brasil. O "capitão" conseguiu revolver o lodo ideológico da Guerra Fria, que se encontrava estável, no fundo do leito, emprestando-lhe suposta atualidade. Generais que faziam blague de certa estridência anticomunista -- porque obviamente passadista e fora de contexto -- deixaram-se mobilizar pela retórica belicosa do extremista. A isso se somou a cruzada contra a corrupção, sob a inspiração da Lava Jato.

Eleito, Bolsonaro teve a ambição de governar acima dos partidos políticos já que julgava ter sob controle o "Partido Militar". Antes mesmo que encontrasse resistência a seus arroubos autocráticos, passou a promover atos golpistas contra o Congresso e o Supremo. O primeiro data de 26 de maio de 2019. Um dos alvos, note-se, era justamente o Centrão. Depois se fez o acordo, mediado pelo Orçamento Secreto, e o tribunal se tornou o alvo exclusivo dos seus ataques, como uma terra a ser colonizada.

Ignoro analista que não tenha cometido o erro de superestimar a formação intelectual dos militares e seu compromisso com as regras do jogo democrático. Resta evidente que Bolsonaro beneficiou os "setores castrenses", como eram chamados antigamente, na reforma da Previdência, por exemplo. Está, adicionalmente, à frente do governo mais uniformizado da história do país, incluindo o ciclo da ditadura. A que erro me refiro?

BOLSONARO PIORA OS PARCEIROS DE JORNADA
Todos achávamos que o discurso extremista do mandatário seria incapaz de contaminar os oficiais-generais. Afinal, parte do que diz desafia a linguagem: a sintaxe troncha obstrui o sentido. O que há de compreensível é insano. A proximidade com oficiais do topo da carreira, apostava-se, haveria de lhe pôr freios. Ocorre, e já destaquei aqui, que o "Mito" tem ao menos um dom: o de estragar as pessoas. Não se tem notícia de vivente que tenha conseguido melhorá-lo, mas ele tem a notável capacidade de piorar os que com ele convivem. Paulo Guedes é um caso óbvio. Nunca o admirei, confesso. Mas também não me parecia estúpido. Nestes quatro anos, conseguiu transformar certa impaciência com o contraditório em grosseria e vulgaridade. Também se pode ver a coisa por um outro filtro: o "capitão" consegue trazer à flor da pele o pior de cada um.

O alto oficialato brasileiro tem formação intelectual e bibliografia suficientes para reconhecer as mistificações de Bolsonaro. Enleado, no entanto, pelo espírito de tutela, que voltou à flor da pele com o governo do "capitão", deixou-se, com exceções, capturar pelas maquinações conspiratórias que tomaram conta do Palácio do Planalto, em conexão com as milícias digitais.

O comportamento destrambelhado e irresponsável do presidente durante a pandemia encontrou no Supremo a sua barreira de contenção. Embora, em todas as ocasiões em que atuou, o tribunal tenha se limitado a aplicar as regras do jogo, o chefe do Executivo passou a acusar uma suposta usurpação de competência que nunca existiu. E, sim, conseguiu convencer alguns oficiais-generais de que o tribunal o impedia de governar. A anulação das condenações de Lula, que deveria ter ocorrido muito antes, contribuiu para formar, entre os fardados, a convicção de que o Supremo, com efeito, tinha a ambição de governar o país, o que é bobagem. Bolsonaro conseguiu inocular nos quarteis até a desconfiança sobre as urnas eletrônicas, o que é patético.

INDISCIPLINA
E chegamos ao ponto em que estamos. Os comandantes das Três Forças ameaçam deixar seus postos antes do fim do mandato, o que caracteriza uma provocação explícita e um incentivo à indisciplina. É uma aberração. As áreas de segurança de alguns quarteis continuam ocupadas por arruaceiros. Cabe às PMs liberá-las, mas nota conjunta dos três comandantes reconheceu a suposta legitimidade dos atos, como se não fossem essencialmente criminosos. Mobilizar-se para impedir a posse do eleito não é exercício da liberdade de expressão, mas incidência no Código Penal.

Ao indicar Múcio para o Ministério da Defesa, Lula opta pela prudência e busca abrir diálogo com a cúpula das Armas, tarefa que, convenham, nem deveria ser necessária porque não cabe aos fardados escolher com que presidente aceitam ou não conversar. Estamos falando de uma instituição que serve ao Estado, não ao governo. Mas também se reconheça que sai ferido quem dá murro em ponta de faca. Em seu silêncio eloquente, tudo o que Bolsonaro quer é uma crise antes mesmo da posse do novo presidente. Risco de golpe? Não creio. Nem Bolsonaro. Como sempre, ele aposta na desordem.

MÚCIO RESOLVE?
Entendo que Múcio tem condições de dirimir a crise, mas é certo que a sociedade brasileira há de responder ao "fator militar". Não é uma tarefa apenas da Presidência. É preciso que outros entes da sociedade se interessem pela questão: afinal de contas, a quem servem as Forças Armadas e que valores são ensinados nos quartéis? Estão realmente afinados com a Carta e com a democracia?

É razoável que soldados ambicionem manter a tutela, além do papel que lhes confere a ordem legal, da terceira maior democracia da Terra — só perde para Índia e EUA no que respeita à população? A resposta é "não". Embora se tenha controlado o fermento — a virada de mesa isolaria também as Forças Armadas —, resta claro que as coisas não estão no devido lugar. Ou não teríamos comandantes ou a flertar ou a condescender com os mercadores da desordem.

Não há alternativa compatível com a ordem democrática que não passe pela volta dos militares ao estrito cumprimento de suas funções constitucionais. E se há de operar com calma e jeito. O primeiro passo é abrir a interlocução, hoje absurdamente obstruída. É o que Lula está a fazer. E por que destaco o absurdo da situação? Porque não houve, desde a redemocratização, presidente que tenha investido tanto no aparelhamento da Defesa. Ainda que reste lá aquela mágoa com a Comissão da Verdade, destaque-se que as restrições ao petista nascem da obtusidade ideológica, do preconceito e da politização indevida dos quarteis, a pior parte da herança maldita de Bolsonaro, já se disse aqui.